domingo, 4 de setembro de 2016

Discografias Comentadas: EMF


Por Micael Machado

No começo da década de 1990, várias bandas da cidade inglesa de Manchester e arredores conseguiram destaques nas rádios mundiais com uma mistura de rock and roll, pop, samplers e outros elementos eletrônicos e ritmos dançantes e "grudentos", em uma "cena" que viria a ser chamada de "Madchester". Dentre nomes como Happy Mondays, The Stone Roses, Inspiral Carpets e James, foi talvez o Epsom Mad Funkers quem se deu melhor (mesmo tendo entrado no movimento meio que por "convenção" da imprensa, visto que a banda se originou na pequena Cinderford, cidade distante de Manchester). O quinteto era formado por James Atkin nos vocais, Ian Dench nas guitarras, Derry Brownson nos teclados e samplers, Zac Foley no baixo e Mark de Cloedt na bateria, todos músicos experientes na região (apesar de bastante jovens), e que foram "agrupados" graças à influência do músico DJ Milf, amigo dos caras, e que ajudou a montar a banda em 1989 (participando depois como convidado do primeiro disco). No ano seguinte, seu single de estreia pelo selo Parlophone, "Unbelievable", era lançado na Inglaterra, alcançando o número 3 da parada de seu país de origem, mas chegando ao primeiro lugar da parada americana. A repercussão abriu espaço para a gravação do primeiro registro completo, e para uma carreira que, entre altos e baixos, mantém os rapazes na ativa até os dias de hoje.

Conheça agora um pouco dos discos e da história de uma das bandas inglesas mais destacadas no final do século XX, o EMF!


Schubert Dip [1991]


"Unbelievable" trazia um pop pegajoso e que se adequava perfeitamente ao gosto das rádios FM daquele começo da década de 1990, mas o álbum de estreia do quarteto não seguia exatamente por esta linha. Os outros principais singles do álbum, "Children" e "I Believe", eram bem mais "nervosos", com a guitarra em destaque e um ritmo frenético, fruto da junção da bateria com os elementos eletrônicos. "Lies", outro destaque, é mais sombria, e causou controvérsia ao trazer, nas primeiras edições do disco, um sample da voz de  Mark David Chapman recitando as primeiras linhas da letra de "Watching the Wheels", música composta por John Lennon (a quem Chapman assassinaria em 1980). Este sample seria retirado das edições posteriores do álbum a pedido da viúva de Lennon, Yoko Ono. O track list de Schubert Dip (título que mistura o nome do famoso compositor austríaco a um popular doce inglês) traz faixas mais pop e dançantes como "Longtime", "When You're Mine", "Girl of an Age" e "Admit It" (guiadas pelos teclados) misturadas a faixas mais "frenéticas" (como "Long Summer Days") e outras de tom sombrio (como "Travelling Not Running", provavelmente a minha preferida na discografia do grupo, e que parece saída de um disco de qualquer uma das bandas góticas de destaque nos anos 1980), além de uma faixa escondida chamada "EMF", uma das melhores composições do quinteto, e cujo refrão brade "E-Ecstasy, M-Motherfuckers, F-From Us To You", o que fez muita gente acreditar que este era o significado da sigla que nomeia o quinteto, algo que os rapazes sempre desmentiram. A boa repercussão do disco de estreia (novamente número 3 na Inglaterra, e número 12 nas paradas americanas) levou ao lançamento do EP Unexplained em 1992, que trazia as inéditas "Far from Me" e "The Same", além de "Getting Through" (que reapareceria no disco seguinte) e uma bela cover para "Search and Destroy", clássico dos Stooges, além da oportunidade de lançarem o segundo disco pela mesma gravadora.

O EMF em 1991: Zac FoleyIan Dench, James Atkin, Mark de Cloedt e Derry Brownson

Stigma [1992] 


O final de 1991 viu o grunge ascender ao estrelato e mudar radicalmente o mundo das paradas de sucesso musical. O EMF com certeza foi atingido pelo furação originado em Seattle, e seu segundo disco vendeu muito menos (ficou na posição número 19 na Inglaterra, sem nem chegar às paradas americanas) e teve um destaque mínimo perto do registro de estreia. O grupo parece ter sido afetado pela áurea mais "séria" e "depressiva" do "novo" estilo musical vigente, e seu novo registro traria um ar muito mais sério e contemplativo do que Schubert Dip. De forma quase "poética", se poderia dizer que o grupo estava abandonando as alegrias da adolescência e passando a enfrentar as agruras da forma adulta, e um bom exemplo disto é o single "It's You", com uma guitarra menos distorcida que antes, teclados de tons mais sombrios e um certo "ar" mais "sóbrio" que as músicas do disco de estreia. "They're Here" é outra composição de tons sombrios, assim como "Never Know", e, apesar da "aura" pop destas duas faixas, parece que anos de distância as afastam das primeiras composições do quinteto, o que também ocorre com "She Bleeds", com muitos elementos eletrônicos, ritmo lento e um certo "peso" dado pelos samplers que pode assustar quem se acostumou com as faixas mais pop do começo da carreira. "Arizona" é uma música bem "rock de FM" (se é que isso existe), ou seja, aquele rock que é "OK", mas não chega a ser tão pesado quanto gostaríamos, apesar de trazer o melhor trabalho de baixo e guitarras do disco. "Inside", "Getting Through" (minha favorita neste disco) e "Blue Highs" ainda trazem um pouco do ritmo frenético e agitado do registro anterior (no caso da última, bem menos acelerado), mas não são tão "alegres" e "divertidas" quanto aquelas canções, o que não ocorre com "Dog", que poderia estar no meio de Schubert Dip sem destoar. Completa o track list a música "The Light that Burns Twice as Bright...", bastante pop, apesar de lenta. A queda na popularidade com certeza deve ter afetado aos membros do grupo, que praticamente se retiraram da cena musical por três anos, até reaparecerem de surpresa com seu terceiro registro de estúdio.

Cha Cha Cha [1995]

Sabe aqueles discos que a crítica determinou serem um fracasso e ninguém se preocupou de ouvir para tentar desmentir isto? Cha Cha Cha se encaixa perfeitamente nesta descrição. Não que a alcunha que lhe foi dada seja de todo vã, pois este é, certamente o pior registro do grupo, um equívoco lançado em uma época onde a cena musical estava a milhas de distância do ano em que o EMF surgiu, e onde a mistura "pop + eletrônico" já havia sido superada pelas bandas indies que ascenderam a partir do grunge, além da cena de rap e hip hop que começava a se erguer na esteira da morte de Kurt Cobain no ano anterior. Percebendo sabiamente que sua onda havia passado, o quinteto tentou reinventar a sonoridade de suas músicas, mas atingiu o alvo em poucos momentos, como no single "Perfect Day" (que trazia flautas tocadas por James em lugar dos elementos eletrônicos de outrora), "The Day I Was Born" (a que mais lembra as canções antigas), "Skin", "Bring Me Down" (duas faixas mais sombrias, com guitarras mais pesadas que o usual do grupo) e "Bleeding You Dry", pop com elementos agradáveis que talvez tivesse conquistado um bom destaque nas rádios cinco anos antes. Mas as faixas menos interessantes acabam sendo a maioria, como "Patterns", levada apenas pela voz de James e o violão de Ian; "West of the Cox", a qual possui um ritmo "malemolente" que a banda usou com resultados muito melhores em faixas mais antigas; "Secrets", que até tem umas guitarras mais pesadas em evidência (mas não chega a decolar); "La Plage", com uma melodia quebrada e confusa (bem diferente dos registros anteriores); "Glass Smash Jack", a qual possui uma bateria eletrônica chata e repetitiva (apesar de um refrão interessante); "Slouch", quase um punk rock atonal, que foi propositalmente gravada como se o grupo estivesse em um ensaio de garagem (e que não chega a lugar nenhum); "Ballad O' the Bishop", com seu ritmo eletrônico lento, repetitivo e chato; e as baladas "When Will You Come" e "Shining", recheadas de elementos eletrônicos (e orquestrações, no caso da segunda), mas que não conseguem se destacar no meio de tanto marasmo. A versão japonesa ainda trazia a faixa "Angel", melhor que muitas composições do track list oficial, mas sem apresentar nada de excepcional ou mais marcante.

O quinteto em 1995

A banda abandonou a turnê promocional de Cha Cha Cha no verão (europeu) de 1995, e retirou-se novamente da cena musical, não sem antes juntar-se aos comediantes Vic Reeves e Bob Mortimer para a gravação do single "I'm a Believer", cover dos Monkees que chegou ao número 2 da parada britânica, e de lançar seu último single oficial, intitulado Afro King, que trazia a faixa título, "Bring Me Down" (de Cha Cha Cha) e as inéditas "Too Much" (para mim,o destaque deste lançamento) e "Easy". Em 2001, foi lançada a coletânea Epsom Mad Funkers: The Best of EMF (em versões simples e dupla, esta com o segundo disco apresentando vários remixes para as faixas da banda), a qual trazia duas faixas inéditas, "Incredible" (que parece saída de Schubert Dip) e "Let's Go" (que mantém uma atmosfera dançante, apesar da sonoridade acústica). O quinteto se reuniu para uma excursão de promoção a este lançamento, mas, em janeiro de 2002, o baixista Zac Foley viria a falecer de uma overdose de medicamentos, o que levou o quinteto a um novo hiato, entrando mais uma vez em uma obscuridade musical.

O EMF ao vivo em 2012

Com Richard March (ex-integrante do grupo Pop Will Eat Itself) assumindo o baixo, os quatro membros remanescentes voltaram a excursionar em 2007, continuando até 2009, quando foi anunciado que o grupo não tinha mais nenhuma previsão para shows em um futuro próximo. Nesta época, o guitarrista Ian Dench, que havia se tornado um compositor de sucesso no mundo pop (tendo escrito hits para artistas como Beyonce e Shakira, só para citar duas) já não estava mais excursionando com o quinteto, tendo sido substituído pelo músico Tim Stephens. Em 2012, alguns poucos shows foram efetivados com a banda tocando Schubert Dip na íntegra (tendo Stevey Marsh no baixo), e, em fevereiro de 2016, o site oficial anunciou que o EMF será o headliner do festival Indie Daze, a ocorrer em Londres na data de 01 de outubro. Resta saber se esta nova reunião irá animar os rapazes (já nem tão jovens assim) a voltar a comporem juntos, ou se o Epsom Mad Funkers ficará apenas na história, marcado como um grupo de potencial enorme, mas com um sucesso limitado pelas circunstâncias do mercado musical. Só o tempo dirá!

Livro: Fresh Fruit for Rotting Vegetables [Os Primeiros Anos]


Por Micael Machado

Lançado em 1980, o álbum Fresh Fruit for Rotting Vegetables, disco de estreia dos Dead Kennedys, é um principais registros do hardcore norte-americano em todos os tempos. Várias de suas músicas tornaram-se clássicos do punk rock mundial, o mítico vinil branco da edição brasileira hipnotizava aqueles que colocavam os olhos sobre ele, e o quase inacessível encarte cheio de colagens e referências (elaborado pelo artista plástico Winston Smith, com sugestões de Jello Biafra) era "sonho de consumo" de muita gente que encontrava o vinil pelos sebos do Brasil, porém, quase sempre desfalcado deste artigo que era uma verdadeira obra de arte. A importância do disco é tamanha, que levou o escritor Alex Ogg a dedicar todo um livro a ele, tratando do período de composição e gravação do registro, assim como dos fatos mais importantes ocorridos com a banda antes de chegar a ele.

A ideia, segundo Ogg explica no prefácio, surgiu quando ele começou a entrevistar os membros da banda (a saber, Jello Biafra nos vocais, East Bay Ray na guitarra, Klaus Flouride no baixo e Ted na bateria) e outras pessoas que conviveram com o grupo na época, entrevistas estas que seriam usadas no encarte da edição de vinte e cinco anos do primeiro álbum do Dead Kennedys. Mas, como não deve ser segredo para quem acompanha o grupo, uma verdadeira batalha judicial acontece até hoje entre os ex-membros do DK, com Biafra de um lado, e Ray e Klaus de outro (Ted saiu do grupo ainda antes do segundo disco). Com isso, as partes envolvidas não conseguiram chegar a um consenso quanto ao uso de suas declarações, sendo que, várias vezes, as versões apresentadas por um lado eram bastante conflitantes em relação ao que o outro lado dizia, e o material acabou abandonado, com a edição especial do álbum sendo lançada de forma bem diferente do imaginado.

Klaus Flouride, Jello Biafra, East Bay Ray e Ted, em uma foto icônica do Dead Kennedys. As circunstâncias da noite onde ela foi tirada são relatadas no livro.

Com muito jogo de cintura, fazendo várias concessões e usando do que chamaríamos por aqui de "jeitinho brasileiro", Ogg conseguiu convencer os componentes do Dead Kennedys a deixá-lo publicar suas entrevistas na forma de um livro, que acabou sendo Fresh Fruit for Rotting Vegetables: Early Years, lançado em 2014, e que ganhou edição brasileira no mesmo ano, a cargo das Edições Ideal (com título traduzido de forma literal, felizmente). Unindo as declarações dos quatro membros originais, além de várias pessoas que, como disse antes, acompanharam este início de carreira do grupo, Ogg acabou obtendo um resultado bastante atraente, e indispensável a quem gostaria de saber um pouco mais sobre a história de uma das mais importantes aglomerações do punk rock norte-americano.

O autor inicia pela formação do Dead Kennedys, com o encontro de Biafra e Bay Ray, que depois se uniriam a Klaus, Ted e o guitarrista 6025 (que sairia antes das gravações de Fresh Fruitna primeira encarnação do conjunto. A partir daí, traça a trajetória ascendente do grupo, apresentando-se pelos bares de sua cidade natal, San Francisco, até ganhar residência no então importante Mabuhay Gardens, onde o quinteto pode desenvolver sua sonoridade e, principalmente, a presença de palco de Biafra, que agitava a plateia (e com ela), além de desafiá-la o tempo todo, e de se entregar "de corpo e alma" em suas apresentações (leia o livro e entenderá o que quero dizer). As dificuldades destes primeiros tempos, os primeiros registros (com os singles "California Über Alles" e "Holidays In Cambodia"), a consagração pelos palcos da Inglaterra, a oferta de lançar seu primeiro disco (pela gravadora britânica Cherry Red) e o período de gravação e divulgação do mesmo são narrados de uma forma que torna a leitura bastante fácil e atraente, com a história sendo contada pelas próprias pessoas que as viveram, e comentários adicionais aqui e ali feitos pelo autor para contextualizar alguns pontos. 

É fácil perceber que, mesmo passado tanto tempo, ainda há uma grande mágoa presente entre Biafra, Ray e Klaus. Não são poucas as oportunidades onde um contradiz o outro ao longo do livro, com Ted por vezes discordando dos dois lados, e apresentando uma terceira visão dos acontecimentos. Ogg fica sempre "em cima do muro" quando das discussões, apresentando sempre que necessário as versões de todas as vertentes envolvidas, sem escolher apenas uma para ser a "verdadeira", deixando isto a cargo do leitor. As divergências são frequentes e constantes, e vão desde a criação e composição das músicas até o fato de quem selecionou tal foto para o encarte ou quem foi o responsável pela escolha dos singles a serem lançados. Apesar destas várias discordâncias, a leitura não se torna maçante em momento nenhum, e tais fatos só servem para provar como um mesmo acontecimento pode ser encarado de formas totalmente diferentes por pessoas diferentes envolvidas com ele (e atingidas por ele).

A versão em capa dura da edição brasileira

O livro ainda conta com várias ilustrações a cargo do designer original do grupo, Winston Smith (o qual ganha um capítulo a parte tratando sobre a importância de seu trabalho), além de declarações de muitos músicos e personalidades influenciadas pela obra dos Dead Kennedys. Na versão lançada pela Edições Ideal (traduzida com competência por Alexandre Saldanha, e que ganhou uma bela versão especial em capa dura), consta ainda um emocionante texto escrito por Marcelo Viegas, responsável pela edição nacional da obra, e que destaca o impacto do disco para a juventude brasileira da época em que foi lançado (e, por que não, da que veio depois daquele tempo), em tom saudosista e de homenagem a um álbum de importância atemporal.

A obra acaba quando da saída de Ted, no final de 1980, e com o afastamento do Dead Kennedys da gravadora Cherry Red, ocorrido no ano seguinte, sem se alongar mais na biografia de uma das principais formações do hardore norte-americano. Mas, apesar de ficarmos com vontade de saber do restante da história após a leitura do livroFresh Fruit for Rotting Vegetables: Os Primeiros Anos é leitura obrigatória aos fãs não só dos Dead Kennedys, mas do punk rock em geral, e altamente recomendada a quem quer saber mais sobre o estilo, que tem no disco, como citei no início, um de seus principais representantes. Pode conferir!

terça-feira, 24 de maio de 2016

Livro: Tocando A Distância - Ian Curtis e Joy Division


Por Micael Machado

Quase trinta e seis anos depois de sua morte, a figura de Ian Curtis, letrista e vocalista do Joy Division, continua a encantar uma multidão de fãs da banda, muitos dos quais ainda se questionam sobre os motivos que levaram o músico a a se suicidar a 18 de maio de 1980, na casa em que morava na cidade de Macclesfield, na Inglaterra. Algumas das respostas poderiam estar no livro Tocando A Distância - Ian Curtis e Joy Division, escrito pela viúva de Ian, Deborah Curtis, e lançado lá fora em 1995, mas que recebeu uma edição nacional apenas em 2014, a cargo da editora Edições Ideal (inclusive em uma bela e luxuosa versão com capa dura). Infelizmente, não é bem isso o que se encontra após a leitura da obra.

Deborah e Ian Curtis, em foto presente no livro

Deborah se casou com Ian quando tinha dezoito anos (e ele dezenove), e teve com ele uma filha, Natalie, nascida em 1979. Mas também teve uma vida muito difícil, passando por grandes dificuldades financeiras (apesar do sucesso em escala cada vez maior da banda do marido), sofrendo com o ciúme doentio de Ian (que o fez se afastar dos amigos e, por um tempo, de sua própria família), com sua personalidade distante e não muito atenciosa (ou carinhosa), e, sobretudo, com a epilepsia do cantor, doença que mudou radicalmente a vida do casal quando foi diagnosticada, tornando o convívio íntimo em algo beirando o insuportável. Além disso, Ian ainda cometeu dois pecados extremamente graves, pelo menos na visão de Deborah: arrumou tempo para ter uma amante (a belga Annik Honoré, que inclusive chegou a acompanhar a banda em uma turnê pela Europa, e manteve seu caso com o músico até a data da morte deste) e, o maior de todos, tirou a própria vida em um momento onde a convivência do casal já estava extremamente abalada, com Deborah inclusive já tendo iniciado o processo do divórcio, apesar do amor que sentia pelo distante e ausente marido.

Sendo assim, não chega a ser uma surpresa constatar que o livro foi escrito do ponto de vista de uma pessoa que, por mais que quisesse bem a Ian Curtis, guarda ainda uma grande mágoa do ex-marido e das circunstâncias em que ele morreu. Desta forma, o retrato que Deborah pinta de Ian é de alguém distraído, distante, que parecia não se interessar pelos amigos e família, que "criava" diferentes personagens para diferentes setores de sua vida (a esposa, os pais, os sogros, a banda, os conhecidos e os fãs), e interpretava estes papéis conforme a situação precisava. A vida pessoal dos dois, da forma como Deborah relata, nos leva a questionar o porquê de ela ter mantido sua união com Ian até próximo de sua morte, pois fica claro que nenhum dos dois conseguiu ser feliz com o casamento, um pouco por causa da doença do músico, mas em muito por causa da banda.

Páginas com fotos presentes em Tocando A Distância - Ian Curtis e Joy Division

Esse ressentimento da autora com o Joy Division é algo que também se torna facilmente perceptível após a leitura. Sem a permissão de Ian para acompanhar o quarteto em seus shows (ou simplesmente assisti-los), especialmente depois que o cantor passou a levar a amante aos mesmos, e sem ter um convívio de amizade com os demais membros do grupo (os quais aparecem apenas superficialmente ao longo das páginas do livro), é muito pouco o que Deborah tem a dizer a respeito da banda, ou de sua convivência interna e criativa.  A autora chega a citar que Ian dizia aos membros do conjunto (e àqueles que conviviam com este) que a convivência entre os dois era insuportável, e que seu casamento era apenas "de fachada", mesmo quando ele ainda dormia todas as noites na casa do casal e quando ela ficou grávida da única filha dos dois, e que este seria um dos motivos pelo qual os amigos e companheiros do músico a teriam excluído do convívio deles. Desta forma, algumas críticas de apresentações são reproduzidas aqui e ali, e curtos comentários da própria escritora sobre alguns poucos shows a que esteve presente também são registrados nas páginas da obra (e servem para indicar que ela também não gostava da música do grupo), mas a participação do quarteto ao longo das páginas do livro é ínfima, decepcionando quem gostaria de saber mais sobre o período em que os ingleses estiveram na ativa em sua encarnação original (lembrando que, após a morte de Ian, os membros restantes "reencarnaram" na forma de uma nova banda, o New Order, seguindo em frente com suas carreiras e suas vidas).

Sobram então pouco mais de 170 páginas de muita mágoa, rancor e amargura destiladas por Deborah em relação a seu finado marido, além de algumas poucas páginas com fotos (a maioria da vida pessoal do cantor, e uma ou outra relacionadas á sua vida profissional), a relação de todos os shows feitos pelo Joy Division, uma extensa e bastante completa discografia do grupo, alguns escritos inacabados de Ian e, talvez o maior tesouro deste livro, todas as letras compostas pelo cantor para a banda (algumas delas inéditas), as quais foram traduzidas com competência na edição nacional pelo jornalista José Julio do Espirito Santo, também responsável pela tradução do texto, o que faz com que o volume fique com um total de 322 páginas, sendo curioso notarmos que pouco mais da metade apenas é dedicada realmente à trajetória do cantor homenageado no título (cuja versão original em inglês, Touching From a Distance, é retirada de um verso de uma das letras que ele compôs, assim como os títulos dos capítulos da obra).

Contracapa de Tocando A Distância - Ian Curtis e Joy Division

Ian Curtis pode até ter tido uma existência tão sofrida, melancólica, miserável e dolorosa quanto Deborah parece passar com este livro, e tornado a vida de sua esposa tão insuportável quanto parece ter sido após lermos a obra, mas isso não é motivo para perdermos tempo com a destilação do rancor da ex-esposa pela perda de seu marido (primeiro para a indústria musical, depois para a amante, e, finalmente, para a vida). Infelizmente, Tocando A Distância - Ian Curtis e Joy Division não é uma obra que justifique sua existência (apesar de ter servido como base para o excelente filme Control, o qual tratou da vida do cantor com resultados muito melhores do que aqueles obtidos por este livro), ainda mais se você está procurando saber mais sobre a banda ou o músico do qual o caro leitor é fã. Se for este o caso, honestamente, passe longe desta obra. Ela não vai lhe acrescentar nada de bom.

Antibanda - Antibanda [2014]


Por Micael Machado

Às vezes, sair de casa para ir a um show pode lhe causar surpresas positivas. No final do ano passado, fui conferir o "Festival Som de Peso", evento ocorrido em duas noites na cidade de Porto Alegre (onde resido), a primeira dedicada ao punk rock, e a segunda ao heavy metal. No início da primeira data, após uma bela apresentação dos gaúchos da Punkzilla, eis que sobem ao palco uma menina com jeito de pin up dos anos 50, e um sujeito de bermuda e boné, com uma tremenda cara de maluco! A menina foi para a bateria, o "maluco" pegou uma guitarra, e os dois mandaram ver em um excelente set de street punk que, embora menos virtuoso, me lembrou muito o Toy Dolls, uma de minhas bandas favoritas em todos os tempos. E, ainda por cima, cantado em espanhol, visto o casal que se apresentava ser uruguaio! Com o queixo no chão, depois da apresentação tive a chance de bater um rápido papo com o simpaticíssimo sujeito que há pouco agitava a todos lá no palco, e receber das mãos dele uma cópia do primeiro disco de sua banda, ou melhor, de sua Antibanda!

Camily (bateria e vocais) e Kbza (vocais e guitarra, na época conhecido como "Kbza de Ultimo") faziam parte do trio cisplatino Green Gay, que chegou a lançar um disco em 2011, chamado Roba Corazones. Com a saída do baixista Kbza Punk em 2013, o duo restante se rebatizou como Antibanda, comprou uma van, e saiu a viajar e se apresentar pela América Latina, tocando em qualquer lugar onde lhe oferecerem "uma bateria e um amplificador", segundo Kbza declarou em uma entrevista de 2014, além, claro, de comida e um lugar para dormir! Com a ajuda de amigos conhecidos na estrada, gravaram alguns clipes para suas composições, e seu primeiro registro, autointitulado, o qual foi disponibilizado para audição no youtube e para download no mediafire. Quem se arriscar a conferir não irá se arrepender, posso afirmar com toda a certeza.

Camily e Kbza, a Antibanda!

A opção pelo street punk (também conhecido como "OI!") se mostra bastante acertada, pois todas as músicas passam aquela alegria e animação do estilo, além de contar com os inevitáveis e característicos backing vocals do gênero. Composições como "Punks y Skins", "Piñata, Fútbol y Cerveza", "Borracho y Orgulloso" ou "Espen de Nait" tem tudo para agradar aos fãs do punk rock "safra 77" de bandas inglesas como Sham 69, Cockney Rejects, Cock Sparrer ou os citados Toy Dolls, além destes títulos (e outros como "La Enfermedad", "La Adicción" ou "Yo Te Canto Con El Corazón") já serem suficientes para se perceber que a temática das letras não tem nada da política de extrema direita, algo que acontece com frequência em muitas bandas ligadas ao OI!, sendo, segundo o que disse Kbza na mesma entrevista citada acima, "retratos" de moradores e situações que ocorrem no bairro onde a dupla mora, meras "histórias do cotidiano" da vida dos dois músicos. Até há, sim, um pouco de protesto contra o governo e as instituições aqui e ali (afinal, trata-se de um disco punk), mas a temática básica da dupla, em geral, passa bem longe da política. 

Como quase todo bom grupo punk que se preze, é claro que há lugar no som da Antibanda para um pouco de ska (presente aqui na faixa "El Holgazán", que ainda tem uma breve citação aos Sex Pistols no final) e algo de romantismo, que aparece no disco na forma de sua maior faixa, "Todo Es Tan Gris", a única a ultrapassar os três minutos (e cuja letra trata da dor de um sujeito preso há quinze anos, distante de sua amada). Cabe citar também que todas as faixas do álbum contam com o som de um baixo (que chega a se destacar em alguns momentos), mas o encarte não especifica quem o gravou, embora eu acredite que tenha sido Kbza Punk, pois li em alguns lugares que este disco deveria ser o segundo do Green Gay, e o antigo membro do trio apareça nos primeiros clipes liberados no youtube, para a já citada "Punks y Skins", "El Patovica" e as faixas "Huracán Pedrito" e "El Turbina" (cujo vídeo foi gravado em Porto Alegre!), as quais, junto com "Hacha y Tiza", "Las Ladillas", "El Punky" e "Yo Te Canto Con El Corazón" (que mencionei acima) aparecem como bônus no disco. Já ao se apresentar ao vivo, como coloquei acima, Camily e Kbza se viram sem o grave das quatro cordas, e, apesar de ser um admirador da sonoridade do instrumento, sou forçado a reconhecer que o baixo acaba não fazendo falta na sonoridade e na empolgação causada pela música da dupla quando em ação on stage!

Camily e Kbza em cena do clipe de "Gargantas", gravado no estádio municipal de Santo André

A Antibanda já disponibilizou no youtube (e também para download) uma prévia de seu novo álbum, o qual estava previsto para ser lançado em março de 2016 (e já conta com um clipe promocional, para a faixa "Gilipolla Records"). Mas, como seus lançamentos são independentes (e feitos "na raça" por eles mesmos, tanto que a cópia do disco que Kbza me passou era um CD-R com a gravação, embalado em um saquinho plástico e com apenas a capa e um encarte de folha simples, sem conter uma contracapa, acredito que por questões de custo), e a única forma de encontrá-los é nos shows do duo (junto a vários artigos de merchandise elaborados e fabricados pela própria Camily), terei de esperar um novo concerto destes uruguaios em Porto Alegre para conferir este novo lançamento. Que não demore muito!

Track List:

01- Punks y Skins 
02- Piñata, Fútbol y Cerveza 
03- El Holgazán 
04- El Patovica 
05- Borracho y Orgulloso 
06- Gargantas 
07- La Enfermedad 
08- Todo Es Tan Gris 
09- Laeneolao 
10- Washington 
11- Espen de Nait 
12- La Adicción 
14- Hacha y Tiza 
15- Hueracan Pedrito 
16- El Turbina 
17- Las Ladillas 
18- Yo Te Canto Con El Corazón 
19- El Punky

Ghost - Meliora [2015]


Por Micael Machado

Meliora, o terceiro registro completo do grupo sueco Ghost, era aguardado não só por mim, mas também por uma imensa legião de fãs conquistados pela banda desde sua estreia em 2010, com o álbum Opus Eponymous. Você pode até não gostar deste sexteto sueco, mas tem de reconhecer que poucos grupos nesta segunda década do século XXI conseguiram um reconhecimento tão grande e tão rápido quanto estes mascarados satanistas. Desta forma, foi com ansiedade que escutei o disco pela internet pouco depois de seu lançamento, em outubro do ano passado. O resultado, devo confessar, não me agradou muito de início, embora eu tenha percebido que havia algo ali a ser explorado mais à frente.

Uma das principais características que levaram o Ghost ao reconhecimento foi, queira-se ou não, o aspecto estético dos músicos tocaram com os rostos escondidos por máscaras, além de serem liderados por um sujeito vestido como um "Papa do mal". Pois a mudança desta identidade visual tão marcante foi um dos primeiros fatores anunciados pelo grupo antes do lançamento de Meliora (título que, em latim, significa "melhor"). Os instrumentistas, todos igualmente denominados como Nameless Ghouls (algo como "Espíritos Sem Nome"), abandonaram suas vestes que lembravam os monges beneditinos e adotaram elegantes ternos e calças sociais, substituindo os capuzes e as máscaras de médicos medievais que cobriam seus rostos por uma máscara que lembra os faunos mitológicos. Além disso, o vocalista Papa Emeritus II foi "aposentado", sendo substituído por seu "irmão mais moço", devidamente nomeado Papa Emeritus III. OK, todos nós sabemos que os três vocalistas que passaram pela banda são a mesma pessoa (alegadamente Tobias Forge, vocalista das bandas Subvision e Repugnant), mas este novo sujeito, em suas apresentações ao vivo, em certo ponto abandonava a tradicional vestimenta de Papa, trajando ele também elegantes ternos e calças sociais, que, junto ao fato de não ser careca como seus antecessores, e a uma máscara bastante diferente das usadas antes (além de parecer mais ágil e magro em cena), realmente nos faz crer se tratar de uma pessoa diferente. Particularmente, acho muito legais estas "brincadeiras" que a banda faz, as quais se tornam uma eficiente e interessante ferramenta de marketing em tempos onde a indústria musical enfrenta uma crise sem precedentes em sua história.

O novo visual adotado pelo Ghost para a divulgação de Meliora

Voltando ao aspecto musical, a sonoridade desta renovação feita pela banda foi primeiro revelada no vídeo da canção "Cirice", onde uma "versão mirim" do grupo aparece em uma espécie de paródia ao filme "Carrie – A Estranha" (embora tão sinistra quanto sua fonte de inspiração). A canção me agradou, mas, por ser mais cadenciada, já dava mostras de que algo estava diferente na sonoridade do sexteto. Um segundo clipe, para a faixa "From the Pinnacle to the Pit", foi veiculado já depois do disco ter sido lançado, mas eu o conheci antes de escutar a obra completa, e o peso do baixo junto ao atrativo refrão levaram minhas expectativas lá para cima. Então eu ouvi o disco por inteiro, e algo não bateu. A sonoridade estava diferente dos registros anteriores, as músicas pareciam mais lentas, os riffs mais repetitivos, e aquela variação de estilos apresentada no segundo disco, Infestissumam (e no próprio EP de covers If You Have Ghost, ambos de 2013), pareciam ter sido deixados de lado. Eu fiquei com uma boa impressão do álbum, mas nada mais.

Aí a banda saiu em uma excursão acústica (intitulada "The Unholy/Unplugged Tour"), apresentando-se apenas com os vocais de Papa Emeritus III e os violões do baixista e de um dos guitarristas. Alguns vídeos (inclusive aparições em TVs dos EUA e Europa) foram divulgados no youtube, e depois os suecos iniciaram a parte "elétrica" da divulgação do álbum, com outros registros (inclusive de apresentações completas) surgindo na rede mundial da internet. E foi assistindo a vídeos como os registrados nas Deezer Sessions do site de mesmo nome, ou no programa Album De La Semaine, do Canal +, que minha ficha finalmente caiu: Meliora é, sim, um grande álbum!

Papa Emeritus III e dois dos Nameless Ghouls durante a "Unholy/Unplugged Tour"

Foi preciso que eu ouvisse as versões "on stage" de faixas como "Mummy Dust", "Majesty" (que "baita" refrão) ou "Spirit" (uma excelente escolha para abrir o disco, explicando o "conceito lírico" escolhido para este registro, que é o fato da humanidade estar enfrentando a "ausência de Deus e suas consequências", segundo declaração de um dos Nameless Ghouls) para perceber que elas podem, sim, ser mais lentas, repetitivas e "simples" perto de suas antecessoras, mas nem por isso possuem uma qualidade inferior àquelas (talvez seja até o contrário). Foi necessário um lyric video da faixa "He Is"para que eu sacasse a ironia de sua letra, e a beleza quase sacra de sua melodia, uma "trollada" genial quando sabemos a qual tipo de ser espiritual os textos do Ghost são direcionados. Foi através destes vídeos (muitos deles registrados de forma amadora pelos fãs nos shows pelo hemisfério norte) que eu me dei conta que "Absolution" é uma das melhores músicas já registradas pelos suecos, e que mesmo as vinhetas "Spöksonat" e "Devil Church" possuíam algo de sombrio e sinistro que eu não havia notado na audição do registro de estúdio. E, como "Deus in Absentia", faixa que encerra o álbum, não entrou nos set lists das apresentações do Ghost, deve ser por isso que ainda não consegui ter apreço por ela (apesar de seu refrão ser excelente - aliás, o Ghost é um dos melhores compositores de refrões que conheço, pois praticamente todas as suas músicas são bastante atrativas neste quesito).

Enfim, demorou algum tempo, mas, depois que eu consegui finalmente assimilar Meliora por completo (lembrando ainda que a edição especial em vinil conta com uma faixa extra, intitulada "Zenith", um pouco mais "pop" que suas colegas de track list, embora também soe sombria), pude finalmente entender porque ele foi apontado por tantos como um dos maiores destaques dentre os lançamentos de 2015, chegando inclusive a ganhar o grammy de melhor álbum de Hard Rock/Metal na edição daquele ano. Um prêmio merecidíssimo, agora eu compreendo, assim como o significado do título do álbum em relação à carreira deste sexteto sueco!

Contracapa da edição regular em vinil de Meliora

"You'll be down on your knees and you'll cry / Cry for absolution"

Track List:

1. Spirit
2. From the Pinnacle to the Pit
3. Cirice
4. Spöksonat
5. He Is
6. Mummy Dust
7. Majesty
8. Devil Church
9. Absolution
10. Deus in Absentia

sexta-feira, 18 de março de 2016

Livro: Nunca É O Bastante: A História do The Cure


Por Micael Machado

Resumir trinta anos da história de sucesso de uma banda famosa em apenas trezentas páginas deve ser um desafio enorme para qualquer escritor. Mas o jornalista australiano Jeff Apter (ex-editor da revista Rolling Stone na Austrália e colaborador de títulos como Vogue, GQ e Australian Hi-Fi) resolveu assumir esta bronca, e saiu-se muito bem ao redigir Never Enough: The Story of The Cure, livro que saiu lá fora em 2005, mas foi lançado no mercado brasileiro apenas em 2015, pela editora Edições Ideal (com o título, felizmente, traduzido em sua versão literal para o português, e não com "inventos aleatórios", como muitas vezes se vê por aí). A espera acabou sendo, de certa forma, benéfica para o Brasil, pois permitiu o acréscimo de um epílogo escrito em 2008 que, além de aumentar um pouco o número total de páginas da obra (que ficou em 318, mais dez outras apenas com fotos), agrega alguns outros fatos importantes acontecidos com o grupo depois da edição da versão original. O bom resultado apresentado por Apter em seu livro se torna ainda mais surpreendente quando constatamos que o convite feito pelo vocalista, guitarrista e eterno líder do The Cure, Robert Smith, para que seu "fiel escudeiro" Simon Gallup (baixista e principal colaborador do cantor ao longo da história da banda) se juntasse ao grupo acontece apenas na página 116 da obra. A entrada de Gallup, no final de 1979, e a consequente gravação do segundo registro do The Cure (Seventeen Seconds, de 1980), marcam, de acordo com Smith, a verdadeira "estreia" do conjunto (devido a vários problemas com a gravadora surgidos antes, durante e depois do lançamento do primeiro disco, Three Imaginary Boys, de 1979), e é, de certa forma, o início da estrada que levaria o The Cure ao reconhecimento mundial alguns anos depois.

Uma das mais importantes formações do The Cure: Simon Gallup, Porl Tompson, Laurence Tolhurst, Boris Williams e (à frente) Robert Smith

Estes "conflitos" com a gravadora são bem explorados pelo autor em algumas das páginas anteriores à união de Smith com Gallup, mas o foco da obra, até então, está na infância e adolescência dos amigos Robert Smith e Laurence Tolhurst (que viria a deixar o grupo em 1989), os quais se conheceram na escola ainda muito jovens, e foram os criadores daquela que viria a ser uma das maiores bandas do mundo nas décadas seguintes. Os primeiros passos musicais dos dois artistas (em grupos embrionários como o The Obelisk e o Easy Cure), suas decepções e suas pequenas conquistas são bastante detalhadas por Apter, que deixa claro que o sucesso não vem por acaso, e que a convicção dos dois músicos em sua obra nunca esmoreceu, mesmo diante de desafios e transtornos (principalmente com a primeira gravadora do grupo, a alemã Hansa) que fariam muitos desistirem, como aconteceu, de certa forma, com o baixista original Michael Dempsey, que saiu (ou "foi saído") do The Cure pouco depois do lançamento de seu primeiro registro completo.

A partir da união de Smith e Tolhurst com Gallup, e do lançamento do segundo disco, o The Cure começou uma trajetória que, entre altos e baixos, levou a banda, como já mencionei, a ser um dos maiores ícones do mundo da música, especialmente na década de 1980, quando seu nome era sinônimo de sucesso, muitas vezes por causa da associação ao termo "rock gótico" (rótulo que Smith sempre rejeitou, mas que, mesmo contra a vontade do cantor, ficaria associado para sempre a estes britânicos desde aqueles tempos). A estrada do grupo não foi feita apenas de momentos felizes, e as muitas mudanças de formação, os problemas de todos com as drogas (com abusos de diversas substâncias ilegais ao longo de muitos e muitos anos), as vidas pessoais atribuladas (principalmente a do líder Smith, que nunca lidou muito bem com o sucesso e o reconhecimento dos fãs invadindo sua privacidade), as dúvidas do líder Robert com relação ao futuro de seu grupo (que o levaram até mesmo a ser membro permanente de oura banda por um tempo, no caso o Siouxsie & the Banshees, e a montar um projeto paralelo de curta duração, intitulado The Glove) e as discussões artísticas com a gravadora Fiction (detentora da maior parte do catálogo do grupo) aparecem com destaque ao longo da obra, bem como comentários do autor para as composições registradas nos onze discos de estúdio lançados após Seventeen Seconds, bem como das circunstâncias de suas gravações e composições, e do "estado de espírito" do grupo quando das mesmas.

O The Cure com Martin Judd nos teclados. Sua passagem pela banda é esclarecida no livro.

A partir da leitura da obra, não é difícil perceber o porquê de tantas mudanças musicais (e pessoais) ao longo da história do The Cure. Do rock lento e depressivo da trilogia Seventeen Seconds, Faith e Pornography ao pop deslavado dos singles Let's Go To Bed, The Walk e The Lovecats, do reconhecimento das rádios aos álbuns The Head On The Door e Kiss Me Kiss Me Kiss Me ao retorno à depressão com os registros Disintegration e Bloodflowers, de lançamentos de sucesso como Wish a títulos equivocados como Wild Mood Swings, a trajetória de Smith e seus asseclas percorreu muitos caminhos diferentes, que pareceriam esquizofrênicos a um ouvinte casual. Mas, graças a Never Enough, se consegue perceber os motivos que levaram a banda por tantos caminhos tortuosos, criando uma legião de fãs que lhes apoiaram em todas as suas aventuras, e continuam a lhes dar suporte ainda hoje. A grande variedade de músicos e formações que o The Cure apresentou nos trinta anos compreendidos pela obra também acaba sendo explicada, de uma forma que demonstra que, ainda que se tenha a percepção de que Smith seja uma pessoa difícil de lidar, a realidade não é tão simplista assim (neste quesito, é primorosa a explicação do autor para a rápida passagem do tecladista Martin Judd pelo grupo em 1986, fato que até o lançamento do livro causava muita controvérsia entre os fãs mais fiéis da banda). A obra também não se furta de dar o crédito de  boa parte do sucesso da banda aos seus elaborados vídeo clipes, especialmente aqueles que tiveram como responsável o diretor Tim Pope, em uma duradoura associação que obteve um sucesso enorme enquanto perdurou.

Como disse, o fato de Apter conseguir contar toda esta conturbada jornada em pouco mais de cento e oitenta páginas (a partir daquele encontro registrado acima) é surpreendente, ainda mais quando se leva em conta que, ao contrário do que acontece em outras biografias, o autor não "apressa" os fatos, evitando "pular" aqueles que julga menos importantes e "resumir" os que mais se destacam, como já li em muitas outras biografias. Indo em direção contrária a vários de seus colegas de profissão, o autor "dá espaço" ao seu relato, em um texto que valoriza as histórias que conta, lhes dando o tamanho necessário e merecido, em uma edição que resulta muto fácil e agradável de ler, ajudada pela competente tradução para o português, a cargo de Ligia Fonseca, que presta um trabalho primoroso, demonstrando um bom conhecimento não apenas da língua inglesa, mas também do assunto abordado (fato que frequentemente é deixado de lado quando as editoras selecionam tradutores para suas obras).

Contracapa de Nunca É O Bastante: A História do The Cure

Com tudo isto, e apesar da trajetória do The Cure continuar ainda hoje, com outros fatos que também mereciam estar registrados em uma biografia, Never Enough: The Story of The Cure se torna ainda mais recomendável, especialmente para quem, como eu, tem o grupo britânico como um dos pilares de sua formação musical (ou apenas aprecia a obra de Smith e companhia, sem o fanatismo exacerbado de alguns fãs). Mesmo que você não goste tanto assim da banda, mas tenha algum interesse pela música e o universo pop das duas últimas décadas do século passado, deveria dar uma "olhada" neste primoroso livro. Garanto a você que não irá desperdiçar seu tempo. Pode acreditar!

Livro: Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia


Por Micael Machado

O jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical e letrista paulista Nelson Motta esteve presente em muitos dos momentos importantes da música brasileira nos últimos cinquenta anos (pelo menos), às vezes como testemunha, e outras como protagonista de fatos que, mais tarde, seriam considerados históricos em termos musicais. Em uma destas ocasiões, foi responsável por apresentar Tim Maia à "pimentinha" Elis Regina, em 1969. O encontro dos dois cantores gerou a gravação da canção "These Are The Songs", que catapultou a carreira de Tim para o estrelato. A partir daí, o músico carioca e Motta criaram uma amizade que duraria, entre altos e baixos, até o falecimento do cantor, em 1998. Por isso, quando a biografia de Tim Maia foi lançada em 2006, não foi surpresa descobrir que o autor do livro (intitulado Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maiaera o amigo de longa data de Maia.

Sebastião Rodrigues Maia (nome de batismo de Tim) foi um dos mais importantes e controversos artistas da música brasileira da segunda metade do século passado. Sua história cheia de fatos pitorescos rendeu, através da excelente prosa de Motta, um livro agradabilíssimo de ler, divertido, instrutivo, detalhado e, por vezes, até mesmo emocionante. Da infância entregando marmitas no Rio de Janeiro aos primeiros passos musicais em grupos vocais de seu bairro (alguns ao lado de Roberto e Erasmo Carlos - sim, esses mesmos em que você está pensando!), do sofrimento com a morte do pai ao período passado nos Estados Unidos (onde acabou preso por, entre outros delitos menores, dirigir um carro roubado de Nova Iorque a Miami, mas onde também conheceu o soul e o funk norte-americanos, os quais traria de forma precursora ao país anos depois), dos tempos de pindaíba quando da volta ao Brasil (deportado pela justiça americana) ao sucesso retumbante na década de 1970, do conturbado período de ostracismo nos tempos em que se dedicou à seita do Racional Superior (que rendeu muitas decepções ao músico, mas também dois dos melhores discos da MPB em todos os tempos) à volta triunfante aos holofotes da mídia nos anos 80, da entrega às drogas e ao álcool durante o final daquela década e o começo da próxima (onde faltava com tanta frequência aos compromissos assumidos que chegava a causar surpresa quando comparecia a um de seus próprios shows) às tentativas de retomar a saúde e o sucesso nos anos imediatamente anteriores à sua morte, as quase quatrocentas páginas de Vale Tudo formam um relato imperdível não só para os fãs do cantor, mas também para todos aqueles interessados em saber o que de importante aconteceu na música produzida no país entre 1965 e o final do século XX.


Nelson Motta e Tim Maia juntos em Nova Iorque

As histórias e relatos (por vezes beirando o inverossímil, mas quase sempre engraçadas, e todas muito interessantes, graças à forte personalidade de Tim, que, como declara Motta, era um personagem de tal feita que nenhum ficcionista seria capaz de criar) sucedem-se de forma natural, bem como as análises feitas pelo autor da discografia do cantor e dos bastidores de suas gravações. A vida particular de Tim também não é deixada de lado, e a importância de sua família, de seus amigos e de suas (várias) mulheres é ressaltada ao longo de toda a narração da trajetória do "síndico" (apelido que recebeu de Jorge Benjor, eternizado na música "W/Brasil (Chama O Síndico)"). Destaca-se ainda, ao longo da leitura, as inclusões de termos "peculiares" do vocabulário do cantor, como "Bauret" (gíria para maconha eternizada pelos Mutantes no disco Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, e cuja origem é esclarecida no livro), "Garrastazu" (um local no prédio onde estivesse no qual ele poderia se esconder e "queimar um bauret"), "Levadinho" (o cachê de seus trabalhos, que poderia ser um "levado" ou um "levadão" dependendo do tamanho) ou "Estratégia", comando que, quando dado por Tim a seus músicos, significava algo como "abandonar o navio", independente das consequências que a debandada fosse causar.

Chama a atenção também a quantidade de hits que o cantor gravou ao longo de sua carreira (mesmo eu, que nunca fui o mais dedicado fã deste artista, ao ler o nome das músicas de destaque em sua trajetória citadas por Motta ao longo da obra, lembrava quase que imediatamente a melodia e/ou a letra - ou pelo menos o refrão - de praticamente todas elas), assim como o grande número de personalidades que surgem aqui e ali ao longo das páginas do livro, em interações por vezes fugazes, por outras duradouras e permanentes na vida de Maia. Músicos, artistas, políticos, jogadores, muitas e muitas figuras conhecidíssimas, as quais normalmente não seriam associadas a um cantor tão popular quanto o biografado, acabam marcando presença em situações as mais variadas, e cujos rumos a personalidade forte e decidida de Tim poderia mudar rapidamente!



Algumas imagens das páginas do livro Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia

Depois de saber tudo isto a respeito do livro, o caro leitor há de estar pensando: "Ok, pode até ser interessante, mas eu já assisti ao filme (ou ao musical, ou ainda à minissérie exibida na televisão) baseado nesta obra aí, então já conheço a história, e não preciso perder meu precioso tempo me dedicando a conhecer um registro tão comprido (400 páginas, por favor, né?)". Ledo engano, meu estimado amigo: o que você viu na tela (ou no palco) não corresponde, arrisco a dizer, a vinte por cento daquilo que consta nas páginas da biografia. E mesmo aquilo que foi selecionado para ser filmado (ou encenado) surge de forma mais extensa e detalhada no livro, tornando a leitura deste bastante prazerosa (e, sobretudo, indicada) mesmo aqueles que já tiveram a oportunidade de estar presentes às três mídias que usaram Vale Tudo como fonte de inspiração. Confira lá, e depois venha aqui me dizer que estou errado, caso tenha coragem!