domingo, 30 de março de 2014

Discografia Comentada: Violeta de Outono


Por Micael Machado


Após saírem do grupo paulista Zero, o vocalista e guitarrista Fábio Golfetti e o baterista Claudio Souza formam o Violeta de Outono em 1984, junto ao baixista Angelo Pastorello, tendo por objetivo executarem uma música que unisse suas influências de pós-punk inglês, rock progressivo e sons da psicodelia inglesa da segunda metade da década de 1960, tendo o Pink Floyd de Syd Barrett à frente. Após gravarem uma demo tape em 1985, lançam no ano seguinte, pela loja de discos Wop-Bop, seu primeiro EP, chamado Reflexos da Noite, o qual continha três músicas e levou o trio a assinar com a gravadora RCA, fazendo parte do então iniciante selo Plug, por onde a companhia lançou diversas bandas importantes do chamado BRock dos anos 80 (este EP seria relançado em CD no ano 2000, com oito faixas bônus). Começava então a trajetória de um dos mais importantes grupos psicodélicos/progressivos do Brasil, cuja discografia você confere a seguir:

Violeta de Outono [1987]

Para mim, é muito difícil ser imparcial com relação ao disco de estreia do Violeta de Outono, pois o considero um dos clássicos do rock oitentista brasileiro, com uma atmosfera psicodélica (e algo de pós-punk, como na instrumental "Retorno") que o faz soar como um disco gravado na Inglaterra do final dos anos sessenta e escondido do mundo por quase vinte anos. Gosto de todas as composições da versão original em vinil, sendo, no entanto, impossível não destacar "Dia Eterno", talvez o maior clássico da carreira do grupo (e um dos maiores do período conhecido como BRock, além de ser o primeiro clipe do trio), e a versão para "Tomorrow Never Knows", dos Beatles, ainda hoje a melhor cover para uma canção dos Fab Four que eu já tive o prazer de escutar. Se "Outono" (que já havia aparecido no primeiro EP) soa como uma bela representante do rock brasileiro de meados dos anos 1980, a face psicodélica do grupo é escancarada em "Declínio de Maio", "Faces" (com melodia conduzida pelo violão), "Luz" (com uma melodia que lembra "Set The Controls For The Heart Of The Sun", do Pink Floyd) e na instrumental "Sombras Flutuantes". "Noturno Deserto" completa o track list original, e apresenta algumas percussões no começo (que chegam a lembrar o disco Larks' Tongues In Aspic, do King Crimson), algo que seria utilizado de maneira mais ampla no disco seguinte. Em 2008, foi lançada uma versão remasterizada em formato mini-vinil que acresceu quatro faixas bônus gravadas em 1987, sendo três instrumentais e um cover para "2000 Light Years From Home", dos Rolling Stones. Já em 1988, foi lançado apenas em fita K7 o EP The Early Years, com quatro regravações de bandas que influenciaram o Violeta (Rolling Stones, Pink Floyd, Gong e Beatles), sendo que o mesmo seria relançado em CD no ano de 2000 (com o acréscimo de um medley de "Echoes", do Pink Floyd, e "No Quarter", do Led Zeppelin), e ganharia ainda uma terceira versão em 2004, chamada Early Years Complete, com um total de quatorze faixas.

Em Toda Parte [1989] 

No seu segundo registro, o Violeta investiu em uma sonoridade um pouco mais "étnica", caracterizada pelo uso de percussão (por vezes eletrônica) em boa parte das faixas, a qual em certos casos soa muito bem (como na viajante "Outra Manhã", um dos destaques do track list), mas em outras se faz desnecessária dentro do arranjo das faixas (como é o caso da interessante "Vênus" ou da floydiana "Ilhas", que ficaria bem melhor sem este recurso, como se ouve nas versões ao vivo). Apesar de não ser um dos meus discos favoritos, posso citar como destaques, além da citada "Outra Manhã", a acústica "Terra Distante", com interessantes partes de teclado no seu arranjo, a instrumental "Dança" (bem calma, levada por violão e piano), a viajante "Lunática" e as duas faixas iniciais, "Rinoceronte Na Montanha De Geléia" e "Em Toda Parte", que na verdade fazem parte de uma mesma jam, lançada na íntegra na reedição do EP de estreia. Completa o track list da versão em vinil a psicodélica "Aqui & Agora" (meio repetitiva), sendo que a versão remasterizada em CD (também lançada em formato mini-vinil em 2008) ganhou ainda duas faixas bônus.

A formação original: Angelo Pastorello, Claudio Souza e Fábio Golfetti

Mulher Na Montanha [1999]

Devido à pouca repercussão de Em Toda Parte e ao fim do selo Plug da RCA, o trio acabou trilhando caminhos diferentes, com Fábio editando um flexi disc sob o nome de Opera Invisível (com a faixa "Numa Pessoa Só", um dos bônus da reedição em CD do segundo registro), e montando depois o Invisible Opera of Tibet, grupo ao qual se dedica até hoje. Em 1995, a formação original se reúne para ensaios visando a gravação de um novo álbum, mas acabou vendo apenas o lançamento do disco ao vivo Eclipse, com gravações do show de lançamento do primeiro EP da banda em 1986, ocorrido no teatro do SESC Pompéia em São Paulo, além de trazer as quatro faixas da fita K7 The Early Years como bônus. Finalmente, em 1999, é lançado Mulher na Montanha, composto de gravações inéditas que foram registradas durante aqueles ensaios de 1995. Mais voltado à sonoridade do primeiro disco, suas três faixas iniciais (a título, que é o maior destaque deste CD, "Lírio de Vidro", mais calma, e "Outro Lado", cuja melodia lembra a de "Em Toda Parte") foram gravadas para compor um single que nunca foi editado. "Trópico" e "Reflexos da Noite" já haviam aparecido no primeiro EP, e a interessante versão para "Astronomy Dominé", do Pink Floyd, serve para reforçar a influência dos ingleses na sonoridade do Violeta, algo que também se pode confirmar em "Espelhos Planos", que parece saída do primeiro LP do grupo de Syd Barrett. Esta e as demais oito canções que compõem o álbum foram registradas durante ensaios para o registro de uma demo tape, que acabou se tornando o novo disco do grupo, lançado pela gravadora inglesa Voiceprint. Dentre faixas mais agitadas (como "Total Silêncio", que possui trechos com o uso de cítara em seu arranjo, ou "Lágrimas Do Dragão", toda em clima de jam session, e um dos destaques), temos composições que parecem saídas do primeiro disco (como "Creme Gelado, Desculpe", que repete a letra de "Vênus", do disco anterior, porém com um arranjo bem diferente, dando ênfase ao baixo, e "Sonho", no estilo tradicional do grupo) e outras mais viajantes, como a instrumental "Duna" (que se une a "Flutuando", quase como se fossem uma única canção) e uma regravação para "Terra Distante", com trechos onde a cítara se destaca, e partes levadas pelo violão, instrumento que comanda a variada "Ilusão", que completa o track list deste que é um dos meus álbuns favoritos do grupo. No ano seguinte, sairia Live at Rio ArtRock Festival '97, com a íntegra do show do Violeta De Outono no Rio ArtRock Festival de 1997, que teve a participação especial do tecladista Fabio Ribeiro (Blezqui Zatzaz, Angra, Shaman).

Ilhas [2005] 

Gravado durante 2002 a 2004, este é o único disco a ter Gregor Izidro na bateria, além de contar novamente com o tecladista Fábio Ribeiro, que tem bastante destaque em todas as composições. Embora as viagens psicodélicas ainda estejam presentes (vide a parte instrumental de "Eclipse" ou a regravação de "Dança", que já havia aparecido no segundo disco, mas aqui ganha toques orientais dados pela cítara e a viola), esta presença mais forte das teclas levou a sonoridade do grupo para um lado mais progressivo, como se ouve na calma "Estrelas" e na instrumental "Línguas De Gato Em Gelatina" (e vai me dizer que esse nome não é herdeiro direto de Larks' Tongues In Aspic, do King Crimson?), onde, apesar das interessantes linhas de teclado, é a guitarra de Fábio Golfetti quem comanda a melodia. Como a reforçar este lado prog, "Blues" é quase uma cover de "Money", do Pink Floyd (compare as linhas de baixo e bateria), com um toque de "One Of These Days", também dos ingleses, e onde a letra é a mesma de "Numa Pessoa Só", que saiu na reedição do segundo disco (e de partes de "Lírio de Vidro", do álbum anterior). Se "Ecos", "Cartas" e "Transe" parecem saídas do primeiro LP, a instrumental "Supernova" retoma as experiências com percussão do segundo registro (embora aqui as mesmas não sejam eletrônicas, e estejam a cargo do percussionista convidado João Parahyba, que já passou pelo Trio Mocotó e possui uma respeitada carreira solo), enquanto "Azul" e "Mahavishnu" são baladas com toques setentistas, sendo que a segunda apresenta boas linhas de violão e momentos de muita viagem progressiva através dos teclados de Fábio Ribeiro, além de uma citação à letra de "Thank You", do Led Zeppelin, em seu trecho final. "Júpiter" é outra balada, porém mais viajante, e a sessentista e (também) viajante "Moon Princess" (com a participação especial da vocalista Naide Patapas) encerra o track list, retomando a melodia de "Lunática", que também encerra o segundo LP. Ilhas é considerado um disco de transição do lado psicodélico para o lado progressivo que apareceria com força a partir do próximo registro de estúdio, mas eu o considero bem equilibrado entre os dois "mundos" por onde o Violeta sempre navegou. Em 2006, já com Cláudio Souza de volta à bateria, saiu o DVD Violeta de Outono & Orquestra, gravado ao vivo no Teatro do SESI, de São Paulo, em Novembro de 2004, e que traz o trio acompanhado de uma orquestra de câmara de 20 integrantes, uma seção de cordas (violinos, viola, violoncelo e contrabaixo) e metais (trompete, trompa e trombone), além de um set de percussão, em um resultado interessantíssimo, que vale a pena ser conferido.

O grupo tocando com orquestra em 2004, em show registrado em DVD

Volume 7 [2007]

Com a entrada dos novos integrantes Fernando Cardoso (teclados) e Gabriel Costa (baixo, em substituição a Angelo Pastorello), neste álbum (que viria a ser o último registro com o baterista Claudio Souza) o Violeta pendeu de vez para uma sonoridade mais progressiva (vide a faixa de abertura, "Além do Sol", onde, apesar do belo solo de Golfetti, o destaque é total para o Hammond de Fernando), embora não tenha abandonado totalmente o psicodelismo, como se nota em "Em Cada Instante" (cuja segunda parte parece saída diretamente do verão do amor californiano, além de trazer trechos que emulam os Beatles no início e no final) ou na quase totalmente instrumental "Pequenos Seres Errantes" (com teclados que remetem diretamente ao Pink Floyd da fase Meddle). A sessentista "Broken Legs" tem letra em inglês, assim como a linda balada "Eyes Like Butterflies", que já havia aparecido no DVD anterior, mas cuja presença de Fernando nesta versão de estúdio só fez engrandecer a música. Outras canções mais calmas são "Ponto de Transição" (levada pelo piano) e "Caravana", sendo que a longa faixa de encerramento, "Fronteira", tem uma espécie de jazz prog no início onde todos se destacam, tornando-se depois uma excelente e variada faixa progressiva. Um belo registro, que foi melhor detalhado neste texto publicado no site Consultoria do Rock, e que possui uma sonoridade familiar aos fãs, embora diferente dos anteriores, além de ter chamado a atenção de muitos que nunca tinham dedicado seu tempo e seus ouvidos ao grupo. Na sequência, foram lançados dois DVDs: Seventh Brings Return - A Tribute to Syd Barrett (de 2009, mas gravado em 2006), onde o Violeta escancara sua influência de Pink Floyd e de Barrett, tocando treze músicas da fase em que este liderava o conjunto britânico (mais uma de sua carreira solo); e Theatro Municipal, São Paulo, 3 de maio de 2009 (2011), com show registrado conforme o título, onde o quarteto interpretou o primeiro disco na íntegra, além de outras músicas gravadas em meados dos anos 80, e que saíram no primeiro EP do grupo (DVD este que, infelizmente, tem alguns problemas técnicos na imagem durante as primeiras músicas, o que atrapalha um pouco àqueles mais exigentes numa era onde tudo tem de ser em "alta definição" - como se nunca tivessem assistido às velhas fitas VHS em suas vidas).

Espectro [2012] 

Marcando a estreia de José Luiz Dinóla na bateria (em substituição a Fred Barley, que entrou após a saída de Claudio, e não chegou a deixar nenhum registro oficial) ao lado de Fábio, Fernando e Gabriel, Espectro pode ser considerado a sequência natural do disco anterior, mantendo a atmosfera progressiva daquele registro, como atestam a faixa de abertura, "Formas-Pensamento" (uma das mais longas composições já registradas pelo Violeta, e que reaparece no final em uma versão demo intitulada "News from Heaven"), "Montanhas da Mente" (que possui uma marcante mudança de andamento no meio), "Algum Lugar" e a longa "Ondas Leves" (com uma parte mais acelerada ao final e uma alternância de solos entre o Hammond de Fernando e a guitarra de Fábio). O lado psicodélico aparece na vinheta que dá título ao CD e na faixa "Anos-Luz", que também apresenta características de progressivo. "Claro Escuro" e "Solstício" possuem uma atmosfera que lembra o primeiro disco, quebrada um pouco pelo teclado, sendo que a bela balada "Dia Azul" completa o track list, em uma composição semelhante a outras do estilo presentes em discos anteriores. Até aqui o mais recente registro do quarteto, é, sem sombras de dúvidas, um dos melhores de sua carreira, e foi colocado por este que vos escreve dentre os dez melhores discos lançados em 2012 em votação aqui no site. Ainda não me arrependi de minha escolha!

Cartaz de show da época de Espectro, Na foto, Fred Barley, Fernando Cardoso, Fábio Golfetti e Gabriel Costa

O grupo segue firme e forte realizando apresentações pelo Brasil (principalmente na região sudeste), sendo que o líder Fábio Golfetti também mantém na ativa o Invisible Opera of Tibet, além de ser o guitarrista da formação atual do Gong, grupo que sempre lhe inspirou e que é liderado pelo mestre Daevid Allen. Que o Violeta de Outono continue a brilhar por muito tempo, e nos delicie com muitas outras sonoridades especiais como tem feito desde o seu início!

quinta-feira, 27 de março de 2014

New Model Army - Thunder and Consolation [1989]


Por Micael Machado


Formado na Inglaterra em 1980, na onda do pós-punk britânico da época, o New Model Army já tinha lançado três álbuns e composto seu próprio "hino" (a polêmica "51st State", que protesta contra a relação de dependência política da Inglaterra junto aos EUA) quando lançou Thunder And Consolation, em 1989. Mas este é o disco que trouxe o reconhecimento do grande público para o grupo, sendo até hoje o seu álbum mais bem sucedido nas paradas e em termos de vendas.

Produzido pelo grupo junto ao lendário Tom Dowd (Allman Brothers, Lynyrd Skynyrd, Cream, Derek and the Dominos e muitos outros), o som do então trio formado pelo líder Justin Sullivan nos vocais, guitarras e teclados, Robert Heaton na bateria (além de backing vocals e ocasionais guitarra e baixo), e Jason Harris no baixo (e teclados e guitarras, o qual sairia do NMA logo após a turnê de promoção) ganhou neste registro um toque mais folk e melódico, principalmente pela participação do violinista Ed Alleyne-Johnson, o que criou uma dimensão completamente nova para a música do grupo, afastando-a do estilo original da banda em direção a uma sonoridade mais ligada ao folk e ao som "pastoril" da Inglaterra.

Thunder And Consolation já começa bem, com a sombria e pesada "I Love the World", um dos destaques do track listpresença constante nos shows do grupo dali em diante. O mesmo caminho tomaria a faixa seguinte, "Stupid Questions", onde as raízes pós-punk do Novo Exército Modelo se fazem presentes, apesar da presença marcante do violão. "Vagabonds", com seu toque folk, e, principalmente, "Green and Grey" também se tornariam clássicos do NMA com o passar dos anos, sendo esta última, praticamente toda acústica ao longo de sua duração, a minha faixa preferida em toda a discografia dos ingleses. É nestas duas faixas (principalmente na primeira) que o violino de Ed aparece com mais destaque, tornando-as completamente diferentes do estilo dos primeiros registros da trupe, e apontando uma direção musical a ser seguida em futuros lançamentos.

New Model Army em 1989: Jason Harris, Justin Sullivan e Robert Heaton

Se "225" e "Ballad of Bodmin Pill" são basicamente simples faixas pós-punk (apesar do belo refrão da primeira e de uma velocidade até certo ponto inesperada na segunda), a surpreendente "Inheritance" é quase um rap, sendo seu instrumental conduzido apenas por voz e bateria, com esparsas participações do teclado e letra discutindo um relacionamento familiar, assunto que também apareceria mais adiante em "Family" (que possui uma melodia de violino meio oriental lá pelo meio) e na acústica "Family Life" (levada apenas por voz e violão), ambas aparecendo em sequência no track list original do vinil.

Neste formato, a faixa de encerramento era a angustiada "Archway Towers" (outra que representa bem o lado pós-punk do grupo), mas, no lançamento original em cassete, havia uma faixa extra, "125 MPH", assim como a versão em CD original continha três faixas bônus, retiradas do EP New Model Army, de 1987. Em 2005, houve o lançamento de uma versão em CD duplo, onde no primeiro disco era re-estabelecida a ordem e quantidade de faixas do vinil original, e, no segundo, havia o acréscimo das faixas bônus das outras edições, bem como de outras retiradas de lados B, gravações ao vivo e versões de demos

Esta edição, já fora de catálogo, é muito procurada pelos fãs da banda, que a consideram, com razão, a "versão definitiva" de Thunder And Consolation, o álbum que eles apontam, quase unanimemente, como o melhor da discografia da banda, que seguiu lançando registros com certa regularidade (além de ver o líder Justin embarcar uma carreira solo paralela), porém sem nunca conseguir superar o brilho de seu quarto álbum, até hoje o ponto máximo de sua trajetória!

Contracapa da versão original em vinil

"And tomorrow brings another train, another young brave steals away"

Track List (segundo a versão original em vinil):

1. "I Love the World"
2. "Stupid Questions"
3. "225"
4. "Inheritance"
5. "Green and Grey"
6. "Ballad of Bodmin Pill"
7. "Family"
8. "Family Life"
9. "Vagabonds"
10. "Archway Towers"

sábado, 22 de março de 2014

Raimundos - Cantigas de Roda [2014]


Por Micael Machado


Neste 2014 se completarão treze anos desde que o vocalista Rodolfo Abrantes deixou o grupo brasiliense Raimundos. De lá para cá, o quarteto lançou um disco que era pouco mais que um amontoado de covers dos Ramones gravados com a participação do ex-baterista do grupo, Marky Ramone (Éramos Quatro, de 2001), um disco de inéditas que não teve tanta repercussão quanto os anteriores (Kavookavala, de 2002), um EP virtual que rendeu menos ainda (Pt Qq cOisAh, de 2005), um CD e DVD ao vivo que mostrava o quanto a ausência do ex-vocalista ainda era sentida (Roda Viva, de 2011) e um split ao lado do Ultraje A Rigor, onde o grupo de Brasília interpretava músicas registradas originalmente pelos paulistas, e vice-versa (Ultraje a Rigor X Raimundos, de 2012). O guitarrista Digão assumiu também os vocais, Marquinho (ex-Peter Perfeito, agora atendendo por Marquim) chegou para dar uma força nas guitarras, o baixista Canisso saiu e voltou, o baterista Fred foi embora de vez, sendo substituído pelo ex-Dr. Madeira Caio, e o grupo, bem ou mal, nunca deixou de fazer shows e lotar os locais por onde passou, apesar das reclamações das "viúvas" de Rodolfo (como eu, admito), que pareciam não aceitar que o grupo continuasse sem seu carismático cantor.

Em 2013, o grupo foi inovador ao lançar pela internet um crowd funding (projeto de arrecadação de fundos através da rede mundial) para a gravação de um novo disco em Los Angeles, nos Estados Unidos, com produção de Billy Graziadei, líder do grupo nova-iorquino Biohazard. Pelo projeto, apenas aqueles que colaborassem financeiramente antes da gravação do álbum teriam direito ao mesmo, sendo oferecidas várias opções de participação, com "recompensas" diferentes de acordo com o valor investido. Quase cinquenta dias antes do prazo final estimado, o quarteto já havia arrecadado o valor necessário para as gravações, e terminaria o dead line com mais que o dobro do valor estipulado!

O baixista Canisso em cena do vídeo de anúncio do crowd funding 

Com a grana no bolso, os brasilienses se mandaram para Los Angeles (não sem antes terem de conviver com um problema na liberação para o visto de entrada nos EUA de Canisso, o que atrasou o início dos trabalhos), e, no dia cinco de fevereiro deste ano, os colaboradores finalmente receberam um link para download antecipado do aguardado oitavo disco de estúdio dos Raimundos, intitulado Cantigas de Roda. Apesar do e-mail enviado deixar claro um pedido de não compartilhamento do álbum com aqueles que não participaram do crowd funding (está lá: "... este álbum é de vocês por direito, vocês que o financiaram. Então, pedimos que não disponibilizem o álbum para terceiros..."), no dia seguinte já era possível baixar o mesmo em diversos sites da internet, e, na data de 21 de fevereiro, já era possível encontrar na rede vídeos para cada uma das canções do álbum, aparentemente feitos com a participação de pessoas que contribuíram com o processo de arrecadação de fundos para o disco.

E, pelo que se ouve neste novo registro, a choradeira daqueles que ainda sentem falta de Rodolfo Abrantes tem tudo para acabar. Cantigas de Roda é um discaço, recuperando plenamente a tradição e o estilo que o grupo ostentava na época de seu ex-vocalista, e, apesar de não trazer muita coisa de novo ao universo musical do quarteto (quase todas as canções lembram algo já feito pelos brasilienses, e não serei eu quem vai deixar de apontar estas semelhanças aqui), mostra em pouco mais de trinta e sete minutos que os Raimundos ainda têm força e qualidade para honrar o posto de uma das melhores bandas surgidas no Brasil durante a década de 1990!

Canisso, Digão, Marquim e Caio

O hardcore rápido e pesado de "Cachorrinha" (com sua letra quase escatológica, e participação de Frango, vocalista do grupo brasiliense Galinha Preta) abre os trabalhos mostrando que o pessoal não está nada a fim de minimizar a porradaria de suas composições, algo que também fica claro em "Rafael" (com um refrão um pouco mais cadenciado, e que me lembra "Nêga Jurema", do disco de estreia do grupo), "Descendo na Banguela" (um pouco menos veloz) e "Nó Suíno" (uma das mais "pegadas"). "Importada do Interior" já tem uma pegada mais metal, mesmo com o refrão bem acessível, e "Baculejo" é um poppy punk típico da banda, meio na linha de "Mato Véio" (do disco Só no Forévis), porém sem tanta velocidade.

Pesada e mais lenta, "BOP" lembra "Andar na Pedra" (de Lapadas do Povo), e tem em seu refrão algo que parece uma declaração de intenções de Digão e sua turma: "Enquanto os doido pedir, vamos continuar", peso este que também aparece em "Politics", que já havia sido disponibilizada nas redes sociais e na rádio 89FM a oito de junho do ano passado, e que, na versão do novo disco, ganha participação especial do rapper Marcio Cipriano e do próprio produtor Billy Graziadei. Já "Gato da Rosinha" é uma típica composição do sanfoneiro Zenilton, lembrando assim o disco de estreia do quarteto (que possui algumas músicas escritas por ele, assim como o segundo álbum, Lavô Tá Novo), e tendo o formato de um forró-core pegado (com direito até à volta do triângulo no meio da porradaria do grupo!), com a esperada letra de duplo sentido das composições do nordestino.

Com cara de hit, "Cera Quente" vem naquela linha de "A Mais Pedida" (também de Só no Forévis), sendo capaz de agradar aos roqueiros menos "radicais" que sejam fãs do grupo, além de muitas das meninas que gostam de suas músicas mais "calmas", e de refrões fáceis como o desta faixa (que gruda nos ouvidos logo nas primeiras audições), além de sua letra sacana parecer ser dedicada especialmente para as fãs dos brasilienses. Já "Dubmundos" (com participação de Sen Dog, do Cypress Hill, nos vocais, e Stu Ranier, do Urban Classics, no baixo) e "Gordelícia" (que lembra "Opa! Peraí, Caceta", de Lavô Tá Novo) adotam o estilo ska, que já havia aparecido em outras composições dos brasilienses, sendo que ambas têm participação especial nos metais de Ulises Bella (do Ozomatli) e de Sheffer Bruton

Digão e Sen Dog, que participa de Cantigas de Roda

Cabe citar que, no momento em que escrevo estas linhas, as mídias físicas de Cantigas de Roda (seja em CD ou em vinil) ainda não foram enviadas a quem participou do projeto de arrecadação de fundos, sendo a previsão de entrega para o longo deste primeiro semestre de 2014, e permanece a ideia de não disponibilizar o mesmo para venda a quem não contribuiu com as gravações (algo que eu, honestamente, duvido muito que ocorra). Para os que nunca curtiram muito os Raimundos, ou para aqueles que não desistem de chorar pela ausência de Rodolfo, este pode ser considerado um disco "mais do mesmo", mas, para mim, como fã e apoiador do projeto de crowd funding, é a comprovação de que o quarteto de Brasília ainda tem relevância e importância no atual cenário do rock nacional, tão ameaçado por bandinhas insignificantes que não têm competência para sequer segurar os instrumentos destes veteranos. Que Digão e seus comparsas continuem por muito tempo na estrada, e, se possível, nos brindando mais seguidamente com álbuns tão bons quanto este daqui!

"De altos e baixos, tem mal que vem para uma evolução... seguindo firme nessa roda até os dedo queimar"

Track List:

1. "Cachorrinha"
2. "BOP"
3. "Baculejo"
4. "Gato da Rosinha"
5. "Cera Quente"
6. "Rafael"
7. "Descendo na Banguela"
8. "Dubmundos"
9. "Nó Suíno"
10. "Importada do Interior"
11. "Gordelícia"
12. "Politics"