domingo, 10 de março de 2019

King Crimson - Live at the Orpheum [2015]


Por Micael Machado

Em 2008, o grupo progressivo inglês King Crimson fez aquela que deveria ser sua última turnê, celebrando seu quadragésimo aniversário. Tendo em seu line up o sempre presente Robert Fripp nas guitarras, sintetizadores e soundscapes (equipamentos eletrônicos que produzem as famosas sonoridades ambientais conhecidas como "Frippertronics"), o cantor e vocalista Adrian Belew, o baterista e percussionista Pat Mastelotto, o baixista e "sticker" (como se chama o instrumentista que toca Chapman Stick, alguém sabe?) Tony Levin (retornando ao grupo após quase dez anos) e um segundo baterista, Gavin Harrison (ex-integrante do Porcupine Tree), o então quinteto se apresentou em poucas datas na Europa antes de entrar em um hiato que, para Fripp, deveria ser definitivo, devido à sua eterna briga com as gravadoras e o mundo empresarial da música (motivo que já o havia feito parar com as atividades da banda algumas vezes antes). Mas, em 2011, Fripp começou a fazer jams despretensiosas com o cantor e guitarrista Jakko Jakszyk, então membro de um grupo tributo ao King Crimson chamado 21st Century Schizoid Band, onde também tocava o saxofonista e flautista Mel Collins, que já havia integrado o Rei Escarlate entre 1970 e 1972, registrando três discos de estúdio e um ao vivo com o grupo. Jakszyk, Fripp e Collins lançaram o álbum A Scarcity of Miracles em maio daquele ano, tendo na "cozinha" a ajuda dos já citados Levin e Harrison. O registro excitou os fãs do King Crimson, que passaram a especular uma volta da banda aos palcos, fato que foi confirmado pelo líder Fripp em 2013.

A nova formação do sempre mutante legado carregado por Fripp seria composta pelo quinteto responsável por A Scarcity of Miracles, com o acréscimo do antigo companheiro Pat Mastelotto e de um terceiro baterista, Bill Rieflin, ex-colaborador de grupos tão díspares quanto Ministry, R.E.M. e Swans, e que, nesta encarnação do KC, ficaria também responsável por alguns dos trechos de teclados. Este septeto ficaria conhecido como "The Seven-Headed Beast" (algo como "A Besta de Sete Cabeças", em tradução livre), e excursionou por 20 datas nos Estados Unidos no final de 2014, em uma turnê chamada "The Elements of King Crimson". Dois destes shows ocorreram em 30 de setembro e 1 de outubro daquele ano no Teatro Orpheum, em Los Angeles, na California, e foram lançados em janeiro de 2015 (coincidindo com o quadragésimo-sétimo aniversário do grupo) sob o nome Live at the Orpheum, em uma edição dupla que compreende um CD e um DVD-Áudio (ambos com o mesmo conteúdo), além de uma versão limitada em vinil de 200 gramas (e repertório igual ao do CD).


"A Besta de Sete Cabeças": Tony Levin, Gavin Harrison, Mel Collins, Bill Rieflin, Robert Fripp, Pat Mastelotto e Jakko Jakszyk

Se, por um lado, este disco ao vivo deve ser bastante saudado, por trazer faixas que o grupo não interpretava ao vivo desde o início da década de 1970 (além do retorno de Collins e Levin a um disco do King Crimson), por outro, vários motivos poderiam ser citados para colocá-lo como uma grande decepção. O maior deles, sem dúvida alguma, é sua curta duração (meros 41 minutos, muito pouco para tanta expectativa gerada pelo anúncio do álbum, sendo que sabe-se hoje que os dois shows foram gravados na íntegra, e poderiam ter sido lançados em sua versão completa, se Fripp assim desejasse), seguido de perto pelo fato de que as duas músicas inéditas presentes no enxuto track list são, na verdade, curtos e desinteressantes trechos instrumentais. "Walk On: Monk Morph Chamber Music", uma delas, é uma simples intro do show, unindo sonoridades geradas pelos Frippertronics, sons aleatórios de flauta e de uma orquestra afinando, conversas entre os músicos e até um trecho falado de uma conhecida "faixa escondida" presente nas edições originais do álbum Islands, de 1971, e que apareceu depois nas edições comemorativas lançadas em CD. Já "Banshee Legs Bell Hassle", a outra "novata", compreende pouco mais de um minuto e meio de barulhinhos percussivos feitos pelos três bateristas, em uma vinhetinha sem muito sentido, pois a força da união de tão talentosos instrumentistas fica longe de ser demonstrada aqui. A única outra canção não lançada na década de 1970 presente no registro, "The ConstruKction of Light" (faixa título do álbum de 2000) também soa decepcionante, não pela primorosa execução (que agrega inéditos trechos de sopro em seu arranjo, em um acréscimo muito bem vindo à música), mas por estar presente apenas em sua curta parte instrumental inicial. Quando a expectativa para a entrada da letra escrita por Belew é interrompida pelo final da faixa, fica uma sensação amarga em quem ouve Live at the Orpheum, pois o gosto de "quero mais" é impossível de se fazer presente nesta hora.

Felizmente, o restante do disco é de fazer sorrir de orelha a orelha qualquer fã mais devoto do Rei Escarlate. "One More Red Nightmare", originalmente presente no álbum Red, de 1974 (particularmente, o meu preferido dentre a vasta discografia do grupo), surge maravilhosa, com destaque para o peso e a força das três baterias, que finalmente se faz presente neste disco, além das passagens de sopro de Collins, especialmente no primeiro solo de sax. Lamentavelmente, faltam aquelas passagens no prato tão marcantes no início da versão de estúdio, e a voz de Jakszyk soa aguda demais perto da perfeição e da força da versão original, registrada pelo saudoso John Wetton, algo que não chega a tirar o brilho de uma das melhores composições da chamada "trilogia elétrica" do King Crimson. Fechando o lado "A" do vinil, como fazia no citado Islands"The Letters" é bastante fiel à versão de estúdio, embora apresente um solo de sax mais longo que aquele registrado décadas atrás por Collins, e falte algo do peso nas guitarras que a faixa original possui. Jakszyk se sai bem melhor aqui, pois seu registro de voz não fica tão distante do de Boz Burrell (cantor da primeira versão), ganhando destaque na parte a capella ao final da canção, e, ao longo do arranjo, o peso e a força das três baterias novamente se faz presente, sem nunca soar "embolado" ou "atropelado", algo que poderia facilmente acontecer com músicos menos tarimbados que os presentes aqui.


Interior da capa gatefold da versão em vinil de Live at the Orpheum

O lado "B" do vinil (ou as duas últimas músicas do CD) também são só alegria. Outra faixa originalmente presente em Islands"Sailor's Tale" sempre foi uma das minhas favoritas da fase inicial do Rei Escarlate, em muito graças à sua vibrante linha de baixo, reproduzida aqui com perfeição por Levin, mas também graças a um sentimento de "perigo" e de aparente desordem que o arranjo produz, e que consegue ser mantido nesta versão, além de alguns pequenos improvisos aqui e ali por parte de Collins. O "ameaçador" mellotron da faixa de estúdio acaba fazendo falta na parte final, mas a guitarra de Jakko e os sopros de Mel conseguem, de alguma forma, compensar esta "perda", com a guitarra de Fripp (penso eu que seja dele) solando alucinadamente ao fundo, e só não transformando esta na melhor faixa de Live at the Orpheum porque o disco se encerra com a maravilhosa "Starless", música que também termina o lado "B" do já citado Red. A maior obra prima já lançada pela banda, esta suíte é um dos grandes clássicos do rock progressivo, e já teve várias versões ao vivo lançadas ao longo dos anos (várias delas presentes na caixa Road to Red, sobre a qual já tratei aqui no site, em matéria que, infelizmente, o site UOL retirou do ar), mas todas elas gravadas ainda com David Cross ao violino. Quem já as ouviu, sabe que o arranjo é bem diferente daquele presente em Red, gravado sem a presença do violinista. Sendo assim, esta é a primeira versão registrada ao vivo com o arranjo de estúdio, onde os sopros de Collins ganham bastante destaque ao longo da execução da faixa (como no registro de 1974, onde ele também esteve presente). Nem a diferença entre os timbres vocais de Jakko e Wetton, nem a evidente desaceleração do trecho final da parte instrumental intermediária (pouco antes da retomada do tema inicial), nem mesmo a sentida ausência do peso do baixo presente no encerramento da composição original conseguem estragar este clássico, que acaba sendo o grande destaque deste belo registro ao vivo do King Crimson.

Live at the Orpheum acabou sendo o único registro da turnê de 2014, mas esta encarnação em septeto ainda participaria dos álbuns Live in Toronto, de 2016 (gravado em 2015 e lançado como parte do Collectors Club do King Crimson) e do box set Radical Action to Unseat the Hold of Monkey Mind, um compilado  de apresentações ao vivo da turnê de 2015 lançado também em 2016. No mesmo ano, Rieflin precisou se afastar da turnê, sendo substituído pelo baterista Jeremy Stacey, da Noel Gallagher's High Flying Birds, mas retornou no ano seguinte, apenas como tecladista, transformando o grupo em um octeto, no que passou a ser conhecida como a encarnação chamada de "Double Quartet", ou "Duplo Quarteto", em tradução livre. A formação do período sem Rieflin está presente no EP ao vivo Heroes e no CD triplo Live in Vienna, ambos de 2017, e o "Double Quartet" aparece em Live in Chicago, lançado no final do mesmo ano, além de continuar na estrada ao longo deste 2018. Seria muito sonhar com uma apresentação da banda aqui por estas terras tropicais? Tomara que não!



Contracapa de Live at the Orpheum

Track List:

1. Walk On: Monk Morph Chamber Music
2. One More Red Nightmare
3. Banshee Legs Bell Hassle
4. The construKction of light
5. The Letters
6. Sailor's Tale
7. Starless

CJ Ramone - American Beauty [2017]


Por Micael Machado

Christopher Joseph Ward passou a fazer parte dos Ramones em 1989, sendo imediatamente "rebatizado" como CJ Ramone, e permanecendo como baixista e eventual vocalista do quarteto nova-iorquino até o encerramento das atividades do grupo, em 1996. Após tentativas de continuar em evidência participando de bandas como Los Gusanos e Bad Chopper, CJ embarcou em uma carreira solo iniciada com o álbum independente Reconquista, de 2012, seguido por Last Chance to Dance, de 2014, voltando sua música à sonoridade tradicional de seus tempos ao lado dos "brothers" de sua banda mais famosa. American Beauty, de 2017 (lançado nas versões CD, vinil preto e em uma linda edição limitada em vinil colorido pela gravadora Fat Wreck Chords, de propriedade do músico Fat Mike, do NOFX, sendo o segundo registro de CJ por este selo), dá continuidade à trajetória do músico, que mais uma vez se fez acompanhar pelas lendas do punk rock Steve Soto (ex-Adolescents, infelizmente falecido em junho deste ano) e Dan Root (ex-Tender Fury e também membro do Adolescents) nas guitarras, além do baterista Pete Sosa (ex-integrante do Roger Miret And The Disasters), em um disco que certamente agradará à enorme e saudosa legião de fãs dos Ramones.

Dan Root, Steve Soto, CJ Ramone e Pete Sosa, a formação que gravou American Beauty

Músicas mais rápidas como a energética "Let's Go" (que abre os trabalhos e é um dos destaques do álbum), “Girlfriend In A Grave Yard" (onde a guitarra solo tem um pezinho na surf music da década de 1950), "Steady As She Goes" e "Run Around" são similares às faixas com CJ nos vocais que encontramos nos discos dos Ramones de Mondo Bizarro para a frente. "You'll Never Make Me Believe" e "Moral To The Story" são mais cadenciadas, mas também não soariam deslocadas no meio do track list destes mesmos álbuns, sendo que a última tem uma vibe bem anos 60 que frequentemente aparecia nas composições da ex-banda de Ramone, e que aqui ainda é enfatizada por um interessantíssimo solo de guitarra.

"Be A Good Girl" soa como uma daquelas semi-baladas cheias de romantismo que Joey costumava compor para os Ramones, e não é difícil imaginar Dee Dee na composição e nos vocais da agressiva "Yeah Yeah Yeah". O riff inicial de "Without You" (com participação especial da cantora Kate Eldridge, do Big Eyes) lembra muito o de "The KKK Took My Baby Away" (embora a canção seja mais lenta que a dos "brothers"), e a semi-balada "Before The Lights Go Out" tem ali no meio uma parte "chupinhada" na cara dura de "I Want You Around", outra composição da ex-banda de CJ. Até mesmo um cover de Tom Waits aparece no disco ("Pony", que conta com trompetes mariachi em seu arranjo), remetendo a "I Don't Want to Grow Up", gravada "você-sabe-por-quem" no álbum ¡Adios Amigos!, de 1995. Para fechar o track list do disco (e, no caso do vinil, o lado A do mesmo), temos a acústica "Tommy's Gone", curta e bela homenagem a Tommy Ramone, baterista original e depois produtor por muitos anos daquele tal quarteto tão falado até aqui, infelizmente falecido em 2014.

A linda (e rara) versão limitada em vinil colorido de American Beauty

Se você procura por originalidade e pelos "novos bons sons" do rock atual, fique longe de American Beauty. Mas, se você quer escutar algo empolgante, com um astral "para cima" e divertido, além de bem composto, gravado (em parceria entre CJ e o produtor e engenheiro Paul Miner) e tocado, com melodias agradáveis e refrões pegajosos (do tipo que você já se pega cantando junto depois de uma única audição), além de emular perfeitamente a sonoridade da melhor banda de rock que já passou por este planeta, então pode se entregar sem medo, pois este é o álbum recomendado para você. Valeu, CJ, e que mais discos assim venham por aí!

Contracapa da versão em vinil de American Beauty

Track List:

1. Let's Go
2. Yeah Yeah Yeah
3. You'll Never Make Me Believe
4. Before The Lights Go Out
5. Girlfriend In A Graveyard
6. Tommy's Gone
7. Run Around
8. Steady As She Goes
9. Without You
10. Be A Good Girl
11. Moral To The Story
12. Pony

Nëcro - Adiante [2016]


Por Micael Machado 

Em uma certa quinta feira no final do ano de 2016, fui até um bar de Porto Alegre conferir a estreia na cidade do trio islandês The Vintage Caravan, pela qual nutria grande expectativa. Na abertura do show, além da banda local Wolftrucker, um outro trio também fazia sua primeira performance em um palco da cidade. Os Alagoanos da Nëcro fizeram um show matador com duração de pouco menos de cinquenta minutos (que, inclusive, pode ser conferido na íntegra aqui), me empolgando tanto que logo comprei, das mãos dos próprios músicos, o CD autointitulado que vendiam no local, e que o trio, meio embaraçado e surpreso pelo "assédio", não se furtou de autografar para mim. O que eu não sabia então é que este já era o segundo lançamento do grupo (que iniciou suas atividades em 2009, ainda sob o nome Necronomicon), e que, à época, eles já estavam com um terceiro disco pronto para ser lançado no mercado, o que ocorreria em dezembro daquele ano, sob o epíteto de Adiante.

Thiago Alef (bateria), Lillian Lessa (baixo e voz) e Pedro Ivo Salvador (guitarras, violão, teclados e voz) - estes dois últimos, curiosamente, em funções invertidas em relação ao álbum anterior - tem uma sonoridade totalmente ligada à década de 1970, com bastante influência da psicodelia (como já entrega a própria capa, em uma bela arte assinada por Cristiano Suarez), mas também incorporando passagens do hard rock do início daqueles anos, e muito da sonoridade do rock brasileiro do final daquele período, como atestam as faixas "Orbes" (abertura do disco e um de seus maiores destaques), "Viajor" (escolhida como segundo single de divulgação) e "Entropia", que lembram os melhores momentos de grupos como Casa das Máquinas, O Terço, Tutti-Frutti ou as faixas mais aceleradas do Som Nosso de Cada Dia, por exemplo. Mas o trio não se furta de "pesar" a mão quando preciso, como acontece em "Azul Profundo", cujo início lembra bandas como Buffalo, Mountain ou Dust, inclusive com excelentes passagens de Hammond para ajudar na viagem para décadas atrás, e que, com mais de sete minutos, é a faixa mais longa e "viajante" do disco, além de contar com um dos melhores solos de Pedro Ivo em todo o registro. Já em "Espelhos e Sombras", um pouco mais lenta que suas colegas de track list, o peso (nem tão pesado assim) chega a lembrar (de longe) as músicas mais doom do Black Sabbath, além de ser a única a contar com trechos na letra que não são em português (sendo estes em espanhol, e não no inglês que o grupo utilizou em algumas faixas de seus discos anteriores).

Nëcro em ação no citado show de Porto Alegre, em foto retirada da página do facebook da banda: Lillian Lessa, Thiago Alef e Pedro Ivo Salvador

A faixa título tem uma surpreendente guitarra slide e tons de ritmos nordestinos no arranjo, além de uma parte mais psicodélica onde as seis cordas lembram as faixas mais "viajantes" do disco de estreia da Jimi hendrix Experience, e o encerramento do álbum se dá com a excelente "Deuses Suicidas", hard rock pesado e rápido que se configura no melhor momento do álbum, sendo, acertadamente (na minha opinião), escolhida como primeiro single de divulgação para Adiante.

Em pouco mais de 36 minutos, o Nëcro registrou um dos melhores discos do rock brasileiro nesta segunda metade da década, o qual, para alegria dos que apreciam o formato, foi lançado em vinil pelo selo Abraxas no começo deste 2018, em uma bela edição cuja pré-venda dava direito a "brindes" como pôsteres e camisetas do trio, um nome ao qual se deve prestar bastante atenção no cenário atual do rock nacional, e do qual espero pérolas ainda melhores no futuro. Aguardemos!

Contracapa de Adiante

Track List:

1. Orbes
2. Adiante
3. Azul Profundo
4. Viajor
5. Entropia
6. Espelhos e Sombras
7. Deuses Suicidas