terça-feira, 15 de julho de 2014

Corrosion of Conformity - Deliverance [1994]


Por Micael Machado

Considerado um dos precursores do crossover entre o heavy metal e o punk, o conjunto norte-americano Corrosion Of Conformity (ou C.O.C. como é chamado por seus fãs) sofreu uma mudança em seu direcionamento musical quando da saída do baixista e (à época) vocalista Mike Dean em 1987. Com a chegada do vocalista Karl Agell, do baixista Phil Swisher e do jovem Pepper Keenan para a segunda guitarra, os membros fundadores Woody Weatherman (guitarra) e Reed Mullin (bateria) fizeram a sonoridade do grupo pender para o metal com toques de thrash em Blind (1991), único disco a contar com esta formação. Com as saídas de Agell e Swisher após a turnê, o trio remanescente decidiu chamar Dean de volta para assumir as quatro cordas, mas, desta vez, quem tomou conta do microfone foi Keenan, que já havia feito os vocais principais em uma das faixas de Blind ("Vote With a Bullet", que, aliás, foi a composição que teve melhor repercussão naquele lançamento). O guitarrista também assumiu o papel de principal compositor, e fez a música do C.O.C. se tornar mais arrastada e pesada, inspirada pelos lançamentos do Black Sabbath na década de 1970 e com ecos do southern rock característico das bandas do sul dos EUA, em um estilo que ficaria conhecido como stoner metal. O primeiro lançamento desta nova fase foi Deliverance, de 1994, que à época se tornou o álbum mais vendido da banda, e o primeiro a ingressar no Top 200 da Billboard, na posição 155.

Muito deste sucesso se deve, por certo, às duas faixas escolhidas como singles pela gravadora. A primeira delas, "Albatross", tem um riff que parece saído de um dos primeiros álbuns do Black Sabbath (como é normal nas composições de stoner), e é de longe a minha faixa preferida da carreira do C.O.C., graças a este citado riff, super cativante, e emoldurado por um andamento em mid tempo marcado por dois solos de guitarras interessantíssimos, o primeiro (mais curto) a cargo de Weatherman, e o segundo (mais ao final) saído da guitarra de Pepper, em um de seus melhores momentos como instrumentista no grupo. Esta música é uma das que mais evidenciam as influências de southern rock em seu arranjo, o que me faz associá-la à faixa "Stone the Crow", do Down, projeto paralelo de Keenan ao lado de Phil Anselmo, ex-vocalista do Pantera, e de músicos do Crowbar e do Eyehategod. Além disso, provavelmente seja a canção que me apresentou ao stoner metal (e ao stoner rock), lá por 1994 ou 1995, em muito graças à constante presença de seu vídeo no saudoso programa Fúria Metal da MTV. A outra faixa de maior destaque (que virou o segundo single) é "Clean My Wounds", que também tinha seu vídeo executado com frequência no mesmo programa, e segue uma linha diferente de "Albatross", sendo mais rápida e agitada, com outro riff memorável e um refrão que fica na cabeça logo após as primeiras audições, além de mais um solo marcante, dividido entre os guitarristas. Estas faixas apresentam dois lados de uma mesma banda, e são, sem dúvidas, os maiores destaques do track list de Deliverance.

Pepper Keenan, Mike Dean, Woody Weatherman e Reed Mullin: o C.O.C. em 1994

Mas, felizmente, o disco não se resume apenas a estas duas maravilhosas canções. Com outro riff marcante e um andamento "quebrado" (além de mais um refrão daqueles que "grudam" no cérebro), "Señor Limpio"  também pode ser apontada como destaque, ao lado de "Seven Days", outra que parece ter sido composta por Tony Iommi e companhia lá no princípio dos anos 1970 (especialmente quando dá uma acelerada mais perto ao final, contrariando o ritmo arrastado que manteve ao londo dos primeiros minutos de duração), de "My Grain", a mais rápida do álbum (apesar de dar uma desacelerada na ponte que leva ao refrão, sendo uma faixa que possui um jeito meio "comercial" que poderia muito bem cair no gosto das rádios dedicadas ao rock, e que, para me conquistar de vez, possui um longo solo de baixo feito por Dean, seguido por mais um marcante solo da dupla Keenan/Weatherman) e de "Broken Man", a qual, pesada e com um pouco de melancolia em seu arrastado arranjo, não soaria deslocada em um dos primeiros álbuns do Alice In Chains (temos de lembrar que o Grunge ainda era grande quando este álbum foi gravado).

Outra faixa que lembra o grupo de Seattle liderado pelo guitarrista Jerry Cantrell é "Pearls Before Swine", que encerra o track list com alguns toques "épicos" em seus quase sete minutos. Já a pesada "Shake Like You" é mais uma que remete ao Black Sabbath, embora não seja tão derivativa, apresentando ainda alguns efeitos nos vocais de Keenan que soam bastante interessantes. A abertura dos trabalhos ficou a cargo da agitada "Heaven's Not Overflowing" (que desacelera no refrão para inserir bastante peso), outra que possui um belo riff por parte de Pepper, sendo que a faixa título (uma das duas únicas que não contam com a participação de Keenan na composição), por sua vez, é mais suingada, tendo seus vocais a cargo de Dean, que alterna um tom mais grave (para os versos) com outro mais agudo (na ponte que leva ao refrão, onde ele conta com a ajuda dos backing vocals de Mullin e Pepper), sendo que o baixista ainda consegue bastante destaque para seu instrumento no arranjo, marcado pelo constante uso do pedal wah-wah por parte da guitarra de Weatherman.

Acústica e melancólica, "Shelter" conta com a presença do músico convidado Bruce Smith na pedal steel guitar, e casa muito bem com as também acústicas "Without Wings" (conduzida pelo violão e apresentando uns poucos efeitos de teclados, cujo autor não foi creditado no encarte) e de "Mano de Mono" (de características semelhantes à anterior, mas trazendo umas poucas linhas de guitarra mais para o final), duas das três vinhetas que completam o track list do disco (a outra é "#2121313", com um toque funéreo e tons melancólicos no início, que vira algo mais "épico" no finalzinho).

Contracapa de Deliverance

A música do Corrosion Of Conformity ainda seguiria esta linha sonora por mais três álbuns de estúdio e um ao vivo, mantendo inclusive a mesma formação (a não ser no disco de 2005, In the Arms of God, onde o baterista é Stanton Moore, do Galactic), mas o envolvimento cada vez maior de Keenan com o Down fez o grupo passar por um hiato entre 2006 e 2010, quando Weatherman, Dean e Mullin decidiram dar continuidade aos trabalhos do grupo mesmo sem seu principal compositor. Com o baixista reassumindo os vocais, o trio lançou um disco que leva o nome do grupo em 2012, e se prepara para um novo lançamento agora em 2014 (que pode até já estar nas lojas quando você estiver lendo estas linhas), mantendo viva a carreira desta que é uma das poucas bandas a poder se orgulhar de ser um dos precursores e expoentes em dois estilos musicais muito importantes para o rock, o crossover e o stoner. Que esta história não pare tão cedo!

"Is there no one to deliver you from your ignorance? Maybe you'll look and see there be no deliverance"

Track List

1. Heaven's Not Overflowing
2. Albatross
3. Clean My Wounds
4. Without Wings
5. Broken Man
6. Señor Limpio
7. Mano de Mono
8. Seven Days
9. #2121313
10. My Grain
11. Deliverance
12. Shake Like You
13. Shelter
14. Pearls Before Swine

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Discografia Comentada: The Cure (Parte II)


Por Micael Machado

Com o retorno de Simon Gallup para a função de baixista e Boris Williams assumindo o posto de baterista (Porl Thompson cuidava então das guitarras e o fiel parceiro Lol Tolhurst dos teclados), Robert Smith tinha pela primeira vez em muito tempo uma formação estável e unida, partindo assim para criar um disco que seria o divisor de águas na carreira do The Cure, o qual passaria a ser um fenômeno mundial a partir da junção deste time de "craques". 

Confira agora a segunda parte da Discografia Comentada do The Cure!

The Head On The Door [1985]

É difícil discordar de Robert Smith quando ele afirma que The Top era uma espécie de rascunho para o que viria em The Head On The Door, afinal, este disco é como se fosse o aperfeiçoamento das ideias presentes no registro anterior. Assim como naquele álbum, há aqui uma mistura do lado pop com o lado depressivo do grupo, sendo o primeiro estilo representado por faixas como "Close to Me" (uma das coisas mais leves  que o Cure já gravou, embora a letra não seja lá muito alegre), "Six Different Ways" (embora sua melodia seja meio tristonha), a estranha "Screw", "The Baby Screams" (onde retornam os experimentos eletrônicos da época em que o Cure era uma dupla), "Push" (hit nas rádios até hoje, e uma das minhas favoritas na discografia do grupo) e "In Between Days", o maior sucesso do disco, composição pop de melodia alegre com letra triste, como o Cure sempre foi especialista em fazer (vide o single "Boys Don't Cry"), ficando a parte sombria a cargo de faixas como a tristonha "Kyoto Song", "The Blood" (levada por violões e de melodia "sinistra", e cuja letra foi inspirada por um porre de vinho da marca Sangue de Cristo que Smith tomou na Espanha) e pela última faixa, "Sinking", que, ao estilo das músicas que encerram os discos anteriores do grupo (à exceção de Japanese Whispers), é melancólica e "para baixo", embora nem tanto quanto suas "co-irmãs" de estilo. A linda balada "A Night Like This" (com batida dançante e solo de saxofone do músico convidado Ron Howe, da banda Fools Dance) consegue unir com perfeição estes dois estilos tão distintos que convivem na música da banda, completando o track list de um dos registros preferidos de muitos fãs, o qual, assim como outros discos, também recebeu sua edição deluxe em 2006, com as habituais demos e faixas
ao vivo no repertório do disco bônus. The Head On The Door foi o primeiro grande sucesso internacional da banda, ficando no Top 20 em muitos países (na Inglaterra atingiu a sétima posição), e, pela primeira vez, figurando no Top 100 da Billboard nos EUA (na posição 59). O caminho das rádios e das arenas americanas (e, por consequência, do resto do mundo) estava aberto para o The Cure, que conseguiu aproveitar muito bem esta oportunidade, especialmente depois que, no ano seguinte, a gravadora Fiction lançou no mercado a coletânea de singles Standing on a Beach (chamada Staring at the Sea na versão em CD, sendo as duas frases os versos de abertura de "Killing an Arab", primeiro single do grupo), que reunia todos os "Lados A" do The Cure até então, com a versão em cassete original contando ainda com quase todos os "B-Sides" da banda (além de existir ainda uma versão em VHS com todos os vídeos oficiais, chamada Staring at the Sea: The Images, e o mesmo track list da versão em CD, que possui quatro faixas extras). Estes dois, junto a Concert, foram os primeiros discos do grupo lançados oficialmente no Brasil, ajudando a espalhar por estas plagas a febre do The Cure, que já começava a se alastrar pelo mundo. Ainda em 1986, dois concertos realizados no Théâtre antique d'Orange, na França (a 9 e 10 de agosto), foram registrados em filme pelo diretor Tim Pope, e virariam o VHS The Cure in Orange no ano seguinte, na minha opinião ainda o melhor registro em vídeo do grupo, sendo que um lançamento oficial em DVD já foi anunciado muitas vezes, mas, infelizmente, nunca se efetivou. O mundo estava pronto para abraçar o The Cure, e a banda não se intimidou com a responsabilidade.


A coletãnea Standing on a Beach: para muita gente, a porta de entrada para o som do Cure


Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me [1987] 

Empolgado com os resultados do disco anterior, Smith solicitou aos outros membros do grupo que participassem do processo de composição do novo álbum, abrindo mão da quase ditadura autoral que havia no The Cure até então. O resultado disso foi que nada mais nada menos que quarenta músicas foram apresentadas, sendo que, das trinta que foram gravadas, apenas dezoito acabaram em Kiss Me, Kiss Me, Kiss MeO álbum (duplo) é como se fosse um resumo da carreira do grupo até então, com faixas bem pop, baladas tristonhas, músicas tipicamente góticas (embora menos depressivas que as da trilogia Faith / Pornography / The Top) e algumas faixas completamente inclassificáveis. Dentre as músicas de inclinação mais pop, estão os quatro hits que tocaram (e ainda tocam) muito nas rádios: "Just Like Heaven", "Catch" (duas "pop songs" agradáveis, bem ao gosto das emissoras de FM), "Why Can't I Be You?" e "Hot Hot Hot!!!" (duas composições alegres e sacolejantes, que lembram os tempos do EP The Walk, embora menos eletrônicas que as faixas daquele registro), além de faixas como "Icing Sugar" (que não ganhou tanto destaque, mas é outra com bom potencial radiofônico, apesar do clima mais sombrio que apresenta), "All I Want", "Torture" (de batida dançável, mas clima angustiante), "The Perfect Girl" (outra que merecia ter tido uma oportunidade nas rádios) e "How Beautiful You Are..." (levada por violões, tendo mais uma vez uma melodia alegre com letra tristonha, bem ao estilo do The Cure). No lado gótico, aparecem "If Only Tonight We Could Sleep" (melancólica e depressiva), a sombria "Like Cockatoos", "The Snakepit" (com vocais cheios de efeitos de ecos, que causam um certo clima lisérgico, reforçado por flautas hipnóticas) e "Fight" (composição tipicamente gótica, de final apoteótico). As baladas "One More Time" (mais tristonha que o usual para o padrão do grupo) e "A Thousand Hours" estão entre as músicas mais lindas que o The Cure já gravou, e o álbum se completa com a excepcional “The Kiss” (de cuja letra foi tirado o nome do play), o "opus guitarrístico” do grupo, e a nervosa e agitada "Shiver and Shake", que parece uma sobre de Pornography ou de Faith, embora seja bem rápida. Uma curiosidade é que a pop e dançante "Hey You!!!" acabou ficando de fora das primeiras edições em CD, pois, na época, o formato só comportava 74 minutos de música. Com o avanço tecnológico que permitiu gravarmos até 80 minutos em um disquinho, ela acabou incluída na reedição deluxe de 2006, a qual conta com as habituais demos e faixas ao vivo, sendo que, nestas, já está presente na formação o tecladista Roger O'Donnell, que entrou para “dar uma força” ao som ao vivo do The Cure, visto Lol estar cada vez mais afundado em seus dramas pessoais relativos a drogas e álcool, e praticamente impossibilitado de tocar nos shows do conjunto, algo que já ocorria há algum tempo, e não iria diminuir tão cedo.


O The Cure como sexteto: Lol Tolhurst, Porl Thompson, Roger O'Donnell, Robert Smith, Boris Williams e Simon Gallup

Disintegration [1989]

Já escrevi sobre este álbum aqui no site, mas nunca é demais analisar de novo aquele que considero o melhor registro do The Cure, e um dos melhores da década de 1980. Com Smith voltando a gravar músicas de climas melancólicos e tristonhos (na maioria das faixas), Disintegration (cujas sessões de gravação veriam a saída de Lol Tolhurst do grupo, incapaz de superar seus vícios pessoais, sendo que seu nome consta nos créditos do encarte apenas por questões contratuais, mesmo ele não tendo participado do disco) conta com sucessos como a sombria Lullaby”, a linda “Lovesong”, a tristonha e melódica “Pictures Of You” e as etéreas “Closedown” e "Plainsong" (estas duas quase completamente instrumentais), que se tornaram hits nas rádios ao redor do mundo e ainda tocam bastante nestas emissoras mesmo hoje em dia. "Fascination Street”, de clima "épico", é uma das minhas favoritas, ao lado da faixa título, a qual, apesar do ritmo agitado, tem uma letra nem um pouco alegre. O track list original ainda contava com as tristonhas e melancólicas "Prayers for Rain”, "The Same Deep Water as You” e "Untitled”, adjetivos que também se adequam a "Last Dance” e "Homesick”, que não foram incluídas na versão em vinil, estando presentes apenas nos formatos CD e cassete. A edição deluxe de 2010 trouxe um disco bônus com diversas faixas em versões demo ou com mixagens alternativas, além de um terceiro CD chamado Entreat Plus, com faixas registradas na Wembley Arena de Londres em 1989, as quais saíram inicialmente em um disco de edição limitada chamado Entreat, de 1991, e ao qual foram acrescidas quatro faixas que completam a íntegra de uma versão ao vivo para Disintegration. No ano de 1990, foi lançada a compilação Mixed Up, que reunia remixes de alguns dos maiores sucessos do The Cure e que já haviam aparecido nos "lados B" de alguns dos singles do grupo, além de faixas regravadas especialmente para o projeto e da inédita "Never Enough", em um disco que aproximou a sonoridade da banda à das pistas de dança da época, com muitos elementos eletrônicos que causaram estranheza por parte de alguns fãs, que torceram o nariz para o álbum, apesar de sua qualidade. 

Wish [1992] 

Sempre encarei este álbum (que marca a estreia do tecladista Perry Bamonte no lugar de Roger O'Donnell) como uma espécie de "Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me - Parte 2", pois, embora com um resultado mais homogêneo, todas as características daquele disco reaparecem aqui: o formato em vinil duplo, a capa em tons avermelhados, a mistura entre músicas pop, baladas, sons depressivos e viagens musicais, e uma intenção clara de continuar nos primeiros lugares das paradas, algo onde este álbum conseguiu superar todos os demais, visto que, pela primeira vez, o The Cure conseguia um "número 1" na Inglaterra, com o disco chegando ao segundo lugar nos EUA. Muito disto foi conseguido graças ao single "Friday I'm In Love", um exemplo de como Robert Smith e companhia são hábeis em escrever canções pop que agradam os ouvintes das rádios por anos, visto que esta música até hoje tem uma boa execução nas FMs dedicadas ao rock no mundo inteiro. Mas outras faixas também parecem ter sido compostas sob medida para a programação das emissoras, como "High", que foi o primeiro single de Wish, a dançante "Wendy Time", a vibrante "Doing the Unstuck" (onde a letra até passa uma ideia de otimismo, algo raro na carreira do The Cure) e a faixa de abertura, "Open", que, apesar da batida dançante, mantém também um certo clima de tensão e melancolia em seu arranjo. Melancolia e atmosfera depressiva que aparecem também em "End", que fecha o track list, e nas lindas "Apart" e "Trust", duas daquelas baladas "de cortar os pulsos" como poucos grupos sabem criar, algo que aparece um pouco menos em "To Wish Impossible Things" e em outra balada (também lançada como single), "A Letter to Elise", que já não chega a ser tão melancólica. Com um ritmo agitado e frenético (além de um belo trabalho de guitarras), "Cut" sempre me lembrou a faixa título do álbum anterior, até pela temática similar das letras em ambas, com o track list sendo completado pela épica "From the Edge of the Deep Green Sea", um dos destaques do álbum, e que virou presença obrigatória nos set lists do grupo daí em diante. As sessões de gravação também renderam quatro faixas instrumentais que foram reunidas no EP Lost Wishes, um dos itens mais raros da discografia do Cure, e a turnê de promoção foi registrada no álbum Show (em versões diferentes para a Europa, onde saiu como álbum duplo, e para os EUA, sendo que neste país o formato foi o de um álbum simples com quatro faixas a menos, reunidas depois no EP Sideshow). Este concerto, gravado em Michigan, nos EUA, também foi lançado em VHS, sendo que sua edição em DVD ainda é aguardada até hoje pelos fãs do grupo. Um segundo disco ao vivo foi registrado na França, recebendo o nome de Paris, e se caracterizando por focar nas canções mais dark do grupo (inclusive algumas do início dos anos 1980), enquanto Show era mais orientado para as faixas de inclinação pop. Após a turnê, Boris Williams e Porl Thompson deixaram o grupo, sendo substituídos por Jason Cooper (bateria) e Roger O'Donnell, que voltou a assumir os teclados da banda, sendo Bamonte deslocado para a guitarra, o que deu início a outra formação que permaneceria estável por um bom tempo.


Um novo quinteto: Jason Cooper, Roger O'Donnell, Perry Bamonte, Simon Gallup e Robert Smith


Wild Mood Swings [1996]

Dando início a uma sequência de discos lançados com intervalos de quatro anos entre si, Wild Mood Swings é frequentemente apontado como o pior registro da discografia do The Cure, algo que eu, meio a contragosto, sou forçado a concordar, pois, embora o considere como uma sequência natural de Wish (apesar do abuso de metais e instrumentos como violino, violoncelo e viola em algumas faixas), tenho de reconhecer que o resultado final ficou bem aquém do alcançado naquele registro. Mas isso não quer dizer que o álbum careça de qualidade, como fica claro em faixas do porte de "Want" (composição lenta sem ser balada, e uma daquelas faixas de clima angustiante e "pesado" que o Cure faz como ninguém), as pop e dançantes "Mint Car" e "Return" e as lindas baladas "Bare", "Treasure" e "Jupiter Crash" (talvez o maior destaque do play). "The 13th", "Gone!" e "Strange Attraction", três dos singles do álbum, são composição leves e "ensolaradas" (a primeira, com muitos metais e cordas, lembra faixas como "The Caterpillar" ou "Close To Me", embora não tenha as mesmas qualidades destas), e acabam se configurando em alguns dos pontos baixos do track list, ao lado de "Club America" (mais pop e dançante, e que apresenta Smith com a voz bem mais grave que o normal) e de "Round & Round & Round", de orientação bastante pop. "Numb" é uma balada tristonha (com um certo clima oriental trazido pela melodia do violino) e "This Is a Lie" é ainda mais melancólica e depressiva, contrastando com a atmosfera pop de "Trap", um pouco mais sombria que suas companheiras de estilo. A versão japonesa ainda trazia uma faixa bônus, a sombria "It Used to Be Me" (melhor que muitas do track list oficial), que no resto do mundo acabou saindo como "lado B" do single para "The 13th". Uma curiosidade é que Jason Cooper participa apenas em nove faixas, sendo que, nas demais, as baquetas são empunhadas por músicos como Ronald Austin, Louis Pavlou ou Mark Price (este, em três músicas). Wild Mood Swings pode até ser o pior álbum do The Cure, mas, ainda assim, merece algumas audições. Talvez para recuperar um pouco o prestígio do grupo, abalado por seu mais recente lançamento, a gravadora lançou em 1997 a coletânea Galore, que, nos moldes do disco Standing on a Beach, trazia todos os "lados A" dos singles lançados entre 1987 e 1997, contando ainda com uma faixa inédita intitulada "Wrong Number", praticamente uma "faixa solo" de Smith, que a gravou ao lado de Jason Cooper e do guitarrista Reeves Gabrels (ex-membro do Tin Machine, de David Bowie), que pela primeira vez colaborava em uma música ao lado do líder do The Cure. 

Bloodflowers [2000] 

A recepção controversa e pouco amistosa a Wild Mood Swings (apesar do nono lugar nas paradas inglesas e do número 12 da Billboard americana) e a crise de meia idade causada pela chegada dos quarenta anos de vida fizeram com que Robert Smith, mais uma vez, decidisse acabar com o The Cure. Com esta ideia em mente, as composições deste álbum acabaram saindo, em sua quase totalidade, com o mesmo clima de tristeza e melancolia presente em outros registros da banda, o que fez com que este disco fosse incluído na trilogia interpretada no DVD Trilogy, onde três álbuns de sentimentos mais sombrios, melancólicos e depressivos foram eternizados, juntos, ao vivo. Bloodflowers é um registro muito superior ao anterior, e, a meu ver, um dos grandes álbuns da discografia dos ingleses, sendo que algumas letras tratam quase que explicitamente sobre o desejo de terminar de vez com tudo, como as lindas baladas "Out of This World" e "The Last Day of Summer" (ambas conduzidas pelo violão), a sombria (mas ainda assim pop) "Maybe Someday", e a obscura e angustiada "39", com alguns efeitos eletrônicos de teclado em seu arranjo. A maior parte do disco é dominado por baladas, como a faixa título (um dos maiores destaques), "Where the Birds Always Sing", "There Is No If..."  (de tom melancólico, e com uma das letras mais tristes da carreira do grupo) ou "The Loudest Sound", outra que contém alguns elementos eletrônicos feitos pelos teclados, mas o track list ainda contém espaço para "Watching Me Fall", uma das mais longas composições do The Cure, que traz quase doze minutos de um chapado delírio "guitarrístico", com a letra, ao que eu entendo, narrando uma noite passada pelo protagonista ao lado de uma prostituta japonesa. A versão em vinil e a edição australiana contam com uma faixa bônus, a agitada "Coming Up", e a pop e alegre "Spilt Milk" foi disponibilizada como bônus apenas na internet. Com a decisão de acabar com o The Cure já tomada por Smith, e o contrato de longa data com a gravadora Fiction chegando ao final, foi lançada em 2001, como "último ato da carreira", a coletânea Greatest Hits, que reunia os maiores sucessos dos vinte e cinco anos de carreira do grupo (contando a fase como Easy Cure), em faixas escolhidas pelo próprio Robert, além das inéditas "Just Say Yes" (com participação especial da cantora Saffron, do Republica) e "Cut Here" (um anagrama para The Cure, e que significa "Corte Aqui", indicando que a carreira da banda terminaria nesta faixa), mais uma daquelas músicas "alegres com letra triste" que Smith sempre foi mestre em compor. Um disco bônus intitulado Acoustic Hits foi lançado em algumas edições, trazendo gravações exclusivas no formato acústico para todas as faixas do álbum principal, além de contar com a participação especial do ex-baterista Boris Williams na percussão. Ainda houve uma terceira edição, que unia aos dois discos citados um DVD com os clipes oficiais para as faixas da coletânea, o qual também foi lançado em um formato separado.


Greatest Hits, o suposto "ponto final" da carreira do The Cure

Contrariando a ideia original de Robert Smith, o The Cure continuou excursionando em 2002, ano no qual foi gravado o já citado DVD Trilogy, apresentando a íntegra dos álbuns Pornography (1982), Disintegration (1989) e Bloodflowers (2000) em um show especial na cidade de Berlin (mais sobre este DVD aqui). Em 2004, a gravadora Fiction (da qual o grupo havia se afastado em 2001) lançou o box set Join the Dots: B-Sides & Rarities 1978–2001, que, como o nome indica, reúne em quatro CDs todos os B-sides lançados pelo grupo no período em que estava sob contrato com o selo (com exceção de alguns remixes), além de faixas raras e algumas poucas inéditas, em um lançamento que teve excelente aceitação por parte dos fãs, por reunir em um único local muito material que, até então, era bastante difícil de conseguir. Em 2003, o The Cure assinou contrato com a gravadora Geffen, abrindo assim a possibilidade de continuar com sua carreira, para a alegria de seus milhões de fãs!

The Cure [2004]


Primeiro disco de inéditas pelo selo Geffen, o álbum auto intitulado de 2004 será eternamente lembrado por causa do enorme sucesso da "popzona" "The End Of The World", uma daquelas canções alegres com letras tristes que o Cure é especialista em fazer. Também pops são "Taking Off", segundo single do disco, "Before Three" (de letra quase otimista, algo raro na carreira de Smith e seus parceiros), "Never" e "(I Don't Know What's Going) On", enquanto "alt. end" (assim mesmo, com todas as letras em minúsculas, e que também virou single), apesar de também moldada para tocar nas rádios, possui um pouco daquele sentimento tristonho que aparece com frequência nas músicas do grupo. "Us And Them" é um pouco mais pesada que o padrão das composições dos ingleses, e as demais faixas possuem uma característica em comum, algo como uma certa mistura de angústia, depressão e melancolia, culminando na viagem lisérgica de quase onze minutos que é "The Promise" (as outras chamam-se "Lost", cuja melodia possui um crescendo de intensidade que parece ficar cada vez mais angustiante, levando o ouvinte ao limite da sanidade, "Labyrinth" e "Anniversary"). A balada de clima melancólico "Going Nowhere" foi excluída da versão americana do álbum, assim como "Truth, Goodness and Beauty" (também tristonha, e que não está presente na versão brasileira). Já o pop tristonho de "Fake" foi incluído apenas no track list da versão japonesa, sendo que no resto do mundo ela foi colocada no lado B do single para "The End Of The World", ao lado da instrumental "This Morning". Cabe destacar a ridícula capa, que parece um desenho feito por uma criança ainda pequena, e que, na verdade, é exatamente isto, visto ser uma compilação de gravuras feitas pelos sobrinhos de Robert Smith para representar "sonhos bons e ruins" de cada um deles. The Cure é um bom disco, com a habitual mistura de alegria e tristeza que aparece frequentemente nos registros do grupo, e que merecia um reconhecimento maior por parte dos fãs. Em 2005, após a turnê de promoção, Roger O'Donnell e Perry Bamonte foram demitidos por Smith, que queria reduzir a banda a um trio, como no início. Mas, após uns poucos shows com este formato, foi anunciado o retorno de Porl Thompson para as guitarras, ficando assim a banda com uma inédita formação de duas guitarras (Thompson e Smith, também vocalista), baixo (Gallup) e bateria (Cooper), a qual permaneceria junta até 2011, e que aparece no DVD Festival 2005, lançado em 2006, registro que contém diversas imagens feitas ao longo de nove apresentações do grupo no ano anterior, feitas por fãs e membros da equipe técnica (em filmagens amadoras) ou por (raras) câmeras profissionais. Um EP com três músicas, também chamado Festival 2005, foi igualmente disponibilizado no mercado, assim como uma coletânea intitulada 4Play, que reúne uma faixa de cada um dos quatro primeiros discos, uma faixa retirada de cada disco bônus das edições deluxe dos mesmos, e regravações para as quatro faixas títulos destes registros, além de uma entrevista com Robert Smith, o qual se tornou uma raridade hoje em dia.


Um quarteto inédito: Porl Thompson, Jason Cooper, Robert Smith e Simon Gallup

4:13 Dream [2008] 

O mais recente álbum de estúdio do The Cure é o único registro de inéditas a contar com a formação em quarteto e sem teclados. Muito aguardado pelos fãs, foi precedido pelo lançamentos de quatro singles (cada um com uma música inédita no lado B) nos meses anteriores à data de lançamento, liberados sempre no dia 13 de cada mês (entre maio e agosto de 2008). A intenção era lançar o disco em 13 de setembro daquele ano, mas, como não foi possível, o grupo liberou nesta data um EP com remixes para os quatro singles já lançados até então (chamado Hypnagogic States). O álbum finalmente chegou ao mercado em 27 de outubro, com treze canções ao total, no formato de um CD simples, frustrando os planos de Smith de lançar um disco duplo (ou dois discos simples simultâneos), sendo que trinta e três canções chegaram a ser registradas pela banda. Dentre as treze selecionadas, há uma certa predominância de músicas de teor mais pop, como "The Only One", "The Perfect Boy", a dançante "Freakshow" ou a sombria "Sleep When I'm Dead", que, não por acaso, foram as quatro escolhidas para preceder o álbum. Na mesma linha, posso encaixar composições como "The Reasons Why", "The Hungry Ghost", "The Real Snow White" (de introdução mais sombria), "This. Here and Now. With You" e a agitada "Switch", que lembra "Push", do disco The Head On The Door. "Sirensong" é tristonha, sem chegar a ser uma balada, rótulo que se aplica bem à melancólica "Underneath the Stars" (um dos destaques, com sua longa introdução instrumental). "The Scream" é talvez a composição mais sombria do álbum, cujo track list se encerra com a agitada "It's Over", quase toda instrumental e também um dos destaques. Por não conter teclados, este é um disco bastante diferente nesta "segunda fase" da banda, mas recheado de qualidades. Uma curiosidade é que 4:13 Dream foi interpretado na íntegra na Piazza San Giovanni de Roma a 11 de outubro de 2008 (antes do lançamento oficial, portanto), em evento que foi registrado para o programa MTV Live, sendo exibido depois para toda a Europa.


O The Cure ao vivo no festival Bestival, em 2011

Em 2011, o grupo fez uma apresentação especial na Austrália, onde interpretou na íntegra seus três primeiros discos (Three Imaginary Boys, de 1979, Seventeen Seconds, de 1980, e Faith, de 1981), em um show que foi registrado para ser lançado futuramente em DVD. Mas, no mesmo ano, Porl Thompson parou de se apresentar ao vivo com a banda, sendo que sua saída do The Cure não foi, a princípio, confirmada oficialmente. Para dar continuidade às turnês, Smith chamou de volta o tecladista Roger O'Donnell, e, com a formação em quarteto consistindo de Smith nos vocais e única guitarra, Simon Gallup no baixo, Jason Cooper na bateria e O'Donnell nos teclados, a banda registrou o duplo ao vivo Bestival Live 2011, cujo lançamento teve caráter beneficente, com os lucros arrecadados pela venda indo para a fundação de auxílio aos jovens "Isle of Wight Youth Trust". No dia primeiro de maio de 2012, Porl Thompson anunciou oficialmente que estava deixando o The Cure mais uma vez, e, ao final do mesmo mês, o grupo embarcou para uma nova turnê, novamente com a formação consistindo em um quinteto, tendo Reeves Gabrels no papel de guitarrista, a princípio como músico convidado, mas depois sendo oficializado no posto, sendo esta a formação que se apresentou na América do Sul em 2013 (leia resenha do concerto na Argentina aqui). 


The Cure em 2013: Simon GallupRoger O'Donnell, Robert SmithJason Cooper e Reeves Gabrels

No começo deste ano, Smith anunciou que a banda lançará um disco intitulado 4:14 Scream, com regravações para quatorze faixas compostas na época do disco 4:13 Dream. Também há planos para o lançamento, em edição limitada, de um álbum duplo intitulado 4:26 Dream, reunindo as sobras do disco anterior, as quais deveriam fazer parte da versão dupla imaginada pelo cantor para o álbum, mas que não foram liberadas pela gravadora. Também há a intenção de lançar o DVD com a apresentação da Austrália que reúne os três primeiros registros, além da ideia de gravar mais um DVD com uma apresentação ao vivo da íntegra dos álbuns The Top (1984), The Head On The Door (1985) e Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me (1987). Resta saber se todos estes planos serão efetivamente colocados em prática, e esperar que Robert Smith e seus comparsas continuem nos brindando com música de excelente qualidade, como tem feito nestes quase quarenta anos de carreira!

Discografia Comentada: The Cure (Parte I)


Por Micael Machado


Oriundos da cidade de Crawley, na Inglaterra, Robert Smith (vocais e guitarra) e Michael "Mick" Dempsey (baixo e vocais), que já tocavam juntos em bandas como The Obelisk e Malice desde 1973, uniram-se ao baterista Laurence "Lol" Tolhurst e ao guitarrista Porl Thompson para formar o Easy Cure em 1977. Após uma frustrada passagem pelo selo Hansa (onde assinaram um contrato, mas não chegaram a lançar nenhum material oficial) e a partida de Thompson, o trio remanescente mudou seu nome para The Cure, e registrou uma demo que chamou a atenção de Chris Parry, então executivo da poderosa Polydor Records. Parry assinou o grupo com seu novo selo, Fiction, e em dezembro de 1978 a banda lançou seu primeiro single (curiosamente pelo selo Small Wonder, devido a problemas de logística envolvendo a ainda iniciante nova gravadora do trio), intitulado "Killing an Arab".



Desde então, foram mais de trinta e cinco anos de muitos sucessos, polêmicas, mudanças de estilo e de componentes, hits nas paradas, a transformação do nome do grupo praticamente em um sinônimo do estilo gothic rock (embora seu espectro musical seja muito mais amplo que o limitado por esta denominação), e legiões de fãs angariados, tendo sempre à frente o carismático Robert "Bob" Smith, uma das figuras mais interessantes do show business mundial, um ícone da década de 1980, um dos maiores compositores do pop rock britânico, e um sinônimo de ídolo para milhões de pessoas ao redor do planeta. 

Confira, aqui e em continuação a ser publicada semana que vem, um pouco da trajetória musical de Bob Smith e seus comparsas, e que a "cura" chegue à sua alma!

Robert Smith, Michael Dempsey e Laurence Tolhurst: o começo do The Cure


Three Imaginary Boys [1979]

Apesar de carecerem de uma produção melhor (conduzida por Mike Hedges), os pouco mais de trinta e três minutos do primeiro álbum do Cure já davam indícios da capacidade criativa do grupo, em canções como "10:15 Saturday Night" (com claras evidências do pós-punk inglês, e até mesmo um curto solo de baixo), a animada "Fire in Cairo" e a melancólica (mas excelente) faixa título, que acabaram virando clássicos do grupo, sendo que não se pode deixar de citar a bela e tristonha "Another Day" (a mais próxima dos rumos que a banda tomaria em lançamentos futuros), a soturna "Accuracy" (com bateria bem marcada e boas linhas de baixo) e a curta "Subway Song" (com Robert na harmônica, e que na edição original termina com um grito desesperado), típicas representantes do pós-punk britânico do período. Por outro lado, "Grinding Halt", "Object", "It's Not You" e "So What" são agitadas e dançantes, soando quase alegres (não fossem as letras), e mostrando que a morbidez e a infelicidade ainda não tinham tomado conta do jovem Bob Smith. O ponto mais baixo do disco é a cover desconjuntada e quase irreconhecível para "Foxy Lady", gravada durante uma sessão de ensaios (com Michael Dempsey fazendo um trabalho terrível nos vocais principais), e que, segundo Smith, não deveria ter figurado no track list final, estando presente por decisão da gravadora, que também escolheu a arte da capa, sem sequer consultar o grupo. Esta canção, bem como a marcada "Meathook" e as citadas "It's Not You" e "So What" (ou "Object", dependendo da edição) não aparecem na versão lançada nos EUA e na Austrália em 1980 (chamada Boys Don't Cry, com uma arte de capa diferente), que, além destas
ausências e da mudança na ordem das faixas, ainda acrescenta a faixa "World War" (outra composição típica do estilo pós-punk) e os singles "Boys Don't Cry" (junto com seu lado B, "Plastic Passion") e "Killing an Arab" (com letra baseada no romance "L'Étranger", de Albert Camus, e que, anos depois, iria causar muita dor de cabeça ao Cure devido aos problemas bélicos no Golfo Pérsico, sendo a única que não aparece em nenhuma reedição oficial dos álbuns de estúdio). Embora soe até ingênuo em certos momentos, e possua uma sonoridade bastante diferente daquela que o grupo adotaria em trabalhos futuros (tanto em termos de estilo quanto de timbres, vide por exemplo a voz de Smith, em alguns momentos soando quase infantil), Three Imaginary Boys é uma boa estreia, e, assim como outros álbuns do grupo, recebeu uma reedição deluxe em 2004 com um disco bônus recheado de demos, faixas ao vivo, sobras de estúdio e até mesmo composições da época do Easy Cure, estas com a presença de Porl Thompson na guitarra solo.

Robert Smith, Matthieu Hartley, Simon Gallup  e Lol Tolhurst: primeiras mudanças


Seventeen Seconds [1980]

Com a partida de Michael Dempsey e a chegada do baixista Simon Gallup junto ao tecladista Matthieu Hartley (ambos ex-Magazine Spies, grupo também conhecido por Magspies), a sonoridade do agora quarteto começou a mudar, ficando mais sombria, minimalista, etérea, melancólica e depressiva (lembrando a do Joy Division, como alguém já comparou um dia), e aproximando o grupo do chamado estilo gothic rock (que eu, particularmente, sempre considerei um pós-punk mais soturno), com Smith declarando anos depois que tinha intenção de que o disco soasse "funebre, porém apaixonado". Exemplos disso são "In Your House", a curta "Three" (uma das mais soturnas) e "At Night" (inspirada pela novela de mesmo nome escrita por Franz Kafka), com linhas de baixo que se sobressaem e bateria bem seca e marcada, além do teclado gélido e impessoal, inspirado sem dúvidas pela sonoridade do álbum Low, de David Bowie. Também se encaixa nesta descrição boa parte da excelente faixa título, além de "A Forest", o grande hit do álbum (e que, nos palcos, foi ficando cada vez mais sombria com o passar dos anos), sendo que, para mim, o grande destaque do track list é a agitada "Play For Today", faixa que entrou para o rol das favoritas dos fãs, sendo especialmente tocante a versão presente no disco ao vivo Paris, onde o público entoa o tempo todo as linhas instrumentais da canção. Embora sua sonoridade melancólica, "Secrets" ainda mostra um pouco de animação em seu andamento, assim como "M", mas nada que chegue perto da definição de "divertido", e o disco se completa com a vinheta de introdução, intitulada "A Reflection" (que traz notas de piano e guitarra em um tema lento e carregado de melancolia) e a faixa de abertura do lado B (outra vinheta intitulada "The Final Sound"), com teclados e pianos de tons assustadores, a qual não chega a durar nem um minuto, pois, embora tenha sido composta para ter uma duração maior, acabou ficando assim mesmo após a fita acabar durante a gravação no estúdio, sendo que a banda não tinha nem tempo nem recursos financeiros para regravá-la (o disco inteiro foi registrado em apenas sete dias por questões econômicas, o que dá uma ideia do status do grupo à época). Em 2005, Seventeen Seconds também recebeu uma reedição deluxe, com um disco bônus recheado de demos, faixas ao vivo e os dois lados do single "I'm a Cult Hero", lançado ainda em 1979 pela banda Cult Hero, um projeto integrado pelos quatro membros do The Cure à época, mais Porl Thompson nas guitarras e o carteiro da área onde Robert Smith morava então, Frank Bell, nos vocais (as mesmas duas músicas deste grupo, em versões ao vivo, também fazem parte do track list desta reedição). Um bom disco, que Smith considera como a verdadeira estreia do grupo (visto que a gravadora teve grande influência na concepção final do álbum anterior), e onde as sombras começavam a baixar sobre a alma de compositor de Bob Smith...


Faith [1981] 

Com a partida de Hartley, o trio remanescente (Smith, agora assumindo também os teclados, Tolhurst e Gallup), lidando com um crescente abuso de substâncias químicas ilegais e consumo de álcool, gravou um disco ainda mais lúgubre e depressivo que o anterior (apesar da quase alegria presente no arranjo de "Primary", o grande hit do álbum, e "Doubt", com guitarras até pesadas para os padrões do The Cure), e ainda mais focado na chamada sonoridade do gothic rock, que aparece com predominância em faixas como "The Holy Hour", a angustiante "The Drowning Man", "All Cats Are Grey" (conduzida por gélidos teclados, e sem a presença da guitarra), "The Funeral Party" e a faixa título (duas das composições mais lúgubres que o grupo já registrou), sendo "Faith" a mais longa de sua discografia até então, beirando os sete minutos e com uma longa introdução instrumental, algo que apareceria bastante daí em diante nos registros de Bob Smith e companhia. "Other Voices", apesar de lúgubre, não é tão tristonha, e a versão em cassete original continha ainda uma faixa instrumental com quase vinte e oito minutos de muita tristeza e melancolia, chamada "Carnage Visors", que serviu de trilha sonora para o curta de animação que levava o mesmo nome da música, e que era exibido antes dos shows da turnê de 1981. Esta canção apareceu como parte do primeiro disco da reedição deluxe de 2005, que continha as usuais demos, faixas ao vivo e sobras de estúdio no segundo CD, além da faixa título do single "Charlotte Sometimes". Faith e Seventeen Seconds também foram reunidos em um álbum duplo lançado em 1981 apenas nos EUA, chamado Happily Ever After, sendo que nenhum dos dois foi disponibilizado individualmente no país até 1986.

Simon GallupRobert Smith e Lol Tolhurst: uma formação estável, mas não por muito tempo


Pornography [1982]

O crescente abuso de drogas e álcool dos membros do grupo estava cobrando o seu preço. Smith, Tolhurst e Gallup já não tinham mais um bom relacionamento pessoal, e o cantor, particularmente, se sentia em profunda depressão e em estado de exaustão. Decidindo que não era possível continuar desta maneira, Smith decidiu que aquele seria o último álbum do The Cure, e que o mesmo seria um sonoro "foda-se" a todas as circunstâncias ruins pelas quais vinha passando à época, contendo a música mais perturbadora e insuportável possível. É por isso que o primeiro verso da primeira faixa (a hoje clássica "One Hundred Years", maior hit do disco, e que possui uma atmosfera sufocante e opressiva) é "não importa se todos nós morrermos". Este sentimento de desilusão e abandono é passado em músicas como "A Short Term Effect", "Siamese Twins", "The Figurehead" (que acabaria se tornando uma das favoritas dos fãs nas apresentações ao vivo), a gélida "Cold" (conduzida pelos teclados, agora operados pelos três componentes da banda, e sem a presença de guitarras) e, principalmente, a faixa título, uma das músicas mais "insanas" já registrada pelos ingleses, com um ritmo repetitivo conduzido pelos teclados e uma atmosfera de loucura e perturbação mental facilmente perceptível ao longo de seus quase sete minutos. "The Hanging Garden", um dos destaques do play, é bem mais animada, com uma bateria quase tribal, mas mantém um clima opressivo em seu arranjo, assim como a linda "A Strange Day", semi-balada que conquistaria os seguidores de Smith logo de cara. Pela primeira vez o The Cure mudava de produtor, tendo ao lado do grupo desta vez Phil Thornalley, que depois teria um papel ainda maior na história do conjunto. Curiosamente, apesar de ser o disco mais "sombrio" do trio até então, e das letras "pesadas" e nada agradáveis (descritas certa vez como o "auto-retrato de um alienado psicopata disfuncional", seja lá o que isso for), este foi o registro que chegou mais alto nas paradas nesta primeira fase, atingindo o número 8 na parada britânica, e configurando a primeira vez que o The Cure atingia o Top 10. Isto obrigou o grupo a fazer uma turnê de promoção que por pouco não foi abandonada no meio, e, quando finalmente terminou, viu Simon Gallup sair da banda, sendo que neste intervalo ele e Smith chegaram às vias de fato depois de um show na França. Pornography também recebeu uma edição deluxe em 2005, com as habituais demos e faixas ao vivo, além da presença da sombria "Airlock: The Soundtrack", trilha sonora instrumental do curta que servia como introdução aos concertos da turnê. Cabe citar também que, por muito tempo, os fãs consideraram os três álbuns mais recentes até então (Seventeen Seconds, Faith, e Pornography) como integrantes de uma "trilogia negra" do grupo, mas o lançamento do DVD Trilogy, em 2003 (onde o último é interpretado na íntegra), veio a descaracterizar esta classificação. 

Robert Smith e Lol Tolhurst: "sobramos apenas nós dois"!

Japanese Whispers [1983] 

Após a partida de Gallup, Lol Tolhurst assumiu os teclados e a programação de bateria eletrônica, deixando Smith com a guitarra, vocais e o baixo, além do cantor ter se tornado membro efetivo do grupo Siouxsie and the Banshees (atuando apenas como guitarrista, e com o qual gravaria o disco ao vivo Nocturne, em 1983, e o álbum Hyaena em 1984, além do single Dear Prudence, com a faixa título sendo um cover para a canção de mesmo nome dos Beatles) e ter criado, ao lado de Steven Severin (dos Banshees) e da vocalista Jeanette Landray, o projeto The Glove, que lançou o álbum Blue Sunshine em 1983 (com a participação de Andy Anderson na bateria). O duo Smith/Tolhurst lançou, sob o nome The Cure, dois compactos simples e um compacto duplo entre novembro de 1982 e outubro de 1983, e os três itens foram reunidos na compilação Japanese Whispers, um dos itens de sonoridade mais "estranha" na discografia do grupo, visto não ter sido concebido como uma obra única. "Let's Go to Bed" e "Just One Kiss" fazem parte do single que leva o nome da primeira (e que tem a presença de Steve Goulding na bateria, músico que já havia tocado com Elvis Costello e o grupo Associates), sendo esta uma faixa criada com intenções sarcásticas por Smith para ser uma espécie de "deboche" ao pop rock da época, e que, surpreendendo a todos, acabou se tornando um hit, entrando no Top 50 inglês e chegando ao número 15 na Austrália. Já a segunda é bem mais sombria, chegando a parecer uma sobra do disco Faith. Quatro músicas vieram do single The Walk: a faixa título, outro grande hit da banda (e o momento mais "eletrônico" do The Cure até então), "The Upstairs Room" (de clima leve e dançante), "The Dream" (com teclados típicos do pop eletrônico do início dos anos 1980), e "Lament" (um pouco mais sombria), onde a dupla Smith/Tolhurst experimentou bastante com ritmos eletrônicos, batidas dançantes e andamentos bastante fora do convencional quando se trata de The Cure. As duas canções que completam o track list ("The Love Cats", talvez a música mais pop já gravada por Smith até então, a qual se tornou mais um hit na carreira do grupo, e "Speak My Language", de andamento similar à anterior) vieram do single The Love Cats, onde pela primeira vez o produtor Phil Thornalley assumia o baixo em um registro do The Cure, com a formação em quarteto sendo completada pela estreia de Andy Anderson na bateria (ele que já havia participado do disco do The Glove), sendo que "Mr. Pink Eyes", faixa presente na versão 12" deste último single, acabou ficando de fora de Japanese Whispers, que foi planejado para ser um item exclusivo do mercado japonês, mas acabou recebendo um lançamento mundial por decisão da gravadora. Embora as drogas e o álcool ainda afetassem muito a Smith e Tolhurst, estes três singles podem ser considerados como a descoberta de que a música do The Cure podia conter passagens alegres, algo que faria muito bem ao grupo tanto musicalmente quanto em termos de retorno do público nos próximos anos. Mas ainda havia um último estágio de trevas a ser ultrapassado antes da chegada ao topo do pop mundial.

Robert Smith, Lol Tolhurst, Andy Anderson e Phil Thornalley: apenas um single como quarteto


The Top [1984]

Com o baixista e produtor Phil Thornalley na Austrália (envolvido na engenharia de som para o vindouro disco do Duran Duran) e Lol Tolhurst praticamente impossibilitado de tocar devido aos abusos químicos e alcoólicos, Robert Smith se viu gravando praticamente sozinho o novo álbum de sua banda (enquanto registrava, no mesmo período de tempo, as guitarras para o disco Hyaena, do Siouxsie and the Banshees), contando apenas com a presença de Andy Anderson na bateria e do retorno temporário de Porl Thompson, que registrou alguns saxofones em certas faixas como músico convidado. The Top é quase um álbum solo do vocalista, e aquele que mais próximo o levou de ter um colapso mental. Se faixas como "The Caterpillar" (com Bob ao violino) ou "Bananafishbones" (e seu andamento estranho) refletiam um pouco da alegria registrada nos singles do ano anterior, canções como as opressivas e sufocantes "Shake Dog Shake" (talvez o maior destaque do track list, virando presença constante nos set lists do grupo daí em diante) e "Wailing Wall" (inspirada por uma visita de Smith ao muro das lamentações junto aos Banshees), além da gélida "The Empty World" (com seu andamento marcial e teclados quase alegres), traziam de volta toda a atmosfera pesada dos discos anteriores, algo que também aparece na nervosa "Give Me It", na baladona tristonha "Dressing Up" e em faixas como "Bird Mad Girl" (com violões flamencos na harmonia) e a agonizante "Piggy in the Mirror" (outro destaque), as quais, apesar de terem uma batida dançante, possuem um sentimento de melancolia em seus arranjos, o qual chega ao seu máximo na faixa título, uma das músicas mais sufocantes e agoniantes que o The Cure já registrou. Um disco estranho, de audição difícil e angustiante (que teve a "honra" de ser o primeiro registrou do grupo a não superar o lançamento anterior nas paradas), mas, depois que você se acostuma com seu misto de tristeza e aparente felicidade (sempre com uma pontinha de melancolia por detrás), acaba por revelar algumas pérolas da discografia do grupo.

Phil Thornalley, Porl Thompson, Robert Smith, Andy Anderson e Lol Tolhurst: a formação do primeiro disco ao vivo, Concert

Com Porl Thompson assumindo guitarras e saxofone para a turnê de promoção ao disco The Top, o agora quinteto registrou seu primeiro disco ao vivo, intitulado Concert (1984), com apenas dez faixas em pouco mais de quarenta minutos, os quais cobriam muito bem estes primeiros anos do The Cure, embora deixassem um gosto de "quero mais" no ouvinte. A versão original em cassete deste registro tinha no lado B um segundo álbum chamado Curiosity (Killing the Cat): Cure Anomalies 1977–1984, com faixas raras registradas ao vivo desde os tempos de Easy Cure até a então recente turnê, incluindo o único registro oficial até então de "Forever", canção que o grupo executou diversas vezes em suas apresentações ao longo dos anos, mas que nunca recebeu uma versão de estúdio. Este álbum nunca foi reeditado em nenhum formato, o que o torna uma das grandes raridades do conjunto, e suas faixas hoje encontram-se disponíveis apenas nas versões deluxe dos primeiros discos da banda, onde estão espalhadas pelos mesmos de acordo com o ano de gravação.

Phil Thornalley, antes um produtor do que um músico, não aguentou os excessos da estrada e resolveu sair do grupo ao final da turnê. Andy Anderson foi demitido ainda antes disso, após destruir um quarto de hotel e se desentender com os outros membros do grupo. Boris Williams (ex-membro dos Thompson Twins) assumiu a bateria, e, após um encontro organizado por um roadie da banda, Simon Gallup retornou às quatro cordas do The Cure, desta vez para nunca mais sair. Com a nova formação, Bob Smith sentia seu grupo renascido, e pronto para conquistar de vez o mundo, mas o que estava por vir ainda era muito maior do que ele sonhava, como você confere na semana que vem.