domingo, 26 de outubro de 2025

Mountain - Climbing! [1970]


Por Micael Machado

Apesar de quase nunca aparecer naquelas listas de "melhores" que surgem de vez em quando aqui e ali, Climbing!, do grupo norte-americano Mountain, é, sem sombras de dúvidas, uma das melhores estreias vinílicas de todos os tempos. Embora, para muitos, não seja sequer o primeiro disco da banda...

A história do Mountain pode começar a ser contada a partir de meados dos anos 1960, quando o produtor, compositor e multi-instrumentista Felix Pappalardi começou a ter certo destaque na "cena" da época através de seus trabalhos como produtor ou músico de estúdio de diversas bandas do período, especialmente algumas sediadas na costa leste do país, como The Devil's Anvil, The Youngbloods e a dupla canadense de folk e country Ian e Sylvia. Em meados de 1967, o power trio inglês Cream escolheu Felix para produzir seu segundo registro, Disraeli Gears, lançado em novembro daquele ano. O trabalho de Pappalardi junto ao grupo formado por Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker foi tão bem recebido, que Felix continuaria trabalhando com a banda nos discos seguintes do trio (não apenas como produtor, mas também contribuindo nas composições e como instrumentista no estúdio), além de ser produtor dos dois discos ao vivo lançados entre 1970 e 1972, já depois da separação do grupo britânico.

Pois foi após o final do Cream, em 1969, que Pappalardi foi procurado pelo guitarrista e vocalista nova-iorquino Leslie West, com quem o produtor já havia trabalhado anteriormente, quando o músico ainda integrava os Vagrants (grupo que mantinha junto a seu irmão, o baixista e vocalista Larry West), banda para a qual Felix havia produzido alguns singles entre 1966 e 1967. West havia montado uma nova banda, e gostaria de contar com os serviços de Pappalardi como produtor. Ainda abalado pelo final prematuro do Cream, e louco para descobrir uma banda que continuasse a sonoridade do power trio que ele havia produzido, Felix compareceu a um ensaio da banda de West, e gostou tanto do que ouviu que se ofereceu não só para produzir o grupo, mas também para assumir o baixo da banda, alegando que o baixista original era muito "fraco" para empunhar o instrumento.

Ficou acertado que, ao invés de um novo grupo, o trio (completado pelo baterista N.D. Smart II) registraria um álbum pelo recém fundado selo de Pappalardi, o Windfall Records (na Inglaterra, o disco sairia pelo selo Bell Records), o qual seria lançado como o início da carreira solo de West, e que chegou ao mercado em julho de 1969, sob o nome de Mountain (apelido "carinhoso" dado pelo produtor ao guitarrista, devido ao seu porte físico, digamos, "avantajado") - cabe citar que o álbum conta, em algumas faixas, com a participação de Norman Landsberg nos teclados, ele que era o tal "baixista fraco" do trio original imaginado por West, o qual era completado pelo baterista Ken Janick. Além de gravar e produzir o disco, Felix também saiu em turnê com West e Smart (além do reforço do tecladista Steve Knight), com a banda chegando até mesmo a se apresentar no festival de Woodstock, em agosto daquele ano, naquele que foi, apenas, o quarto show da carreira do grupo.

Com a boa repercussão da apresentação em Woodstock (e do próprio disco solo de West, que levou muitos a considerarem a sonoridade do grupo como uma espécie de "resposta" norte-americana ao som do Cream), Leslie e Pappalardi resolveram "oficializar" de vez a banda sob o nome Mountain, mantendo Knight na formação (segundo declarações de West anos depois, simplesmente porque Felix não queria que a banda soasse excessivamente parecida com o Cream), mas trocando N.D. Smart pelo baterista canadense Corky Laing (que integrava, então, a banda Energy, que já havia sido produzida por Gail Collins, esposa de Felix Pappalardi), o qual, além de arrasar com as baquetas, também se revelaria um compositor de mão cheia, colaborando diretamente para criar alguns dos maiores sucessos do quarteto nos anos futuros.

O Mountain na arte da capa interna do vinil de Climbing!: Corky Laing, Leslie West (atrás), Steve Knight e Felix Pappalardi (à frente)

O primeiro registro desta turma, lançado em março de 1970, é justamente o citado Climbing!, que, se na teoria é o álbum de estreia do Mountain, na prática, para muita gente (inclusive este que vos escreve), é considerado como o segundo registro da banda, visto que West e Papallardi estavam juntos na gravação do disco solo de West. Seja ele o início ou não da trajetória do Mountain, o que não se pode discutir é que Climbing! é um dos grandes álbuns da década de 1960 (que, nunca esqueçamos, terminou justamente em 1970), desde a sua abertura com a hoje clássica "Mississippi Queen", composição de Laing não aproveitada pelo Energy, a qual foi rearranjada por West, e se tornou a música mais conhecida da carreira da banda, sendo regravada posteriormente por grupos como Bachman-Turner Overdrive, Ted Nugent (ao lado do Molly Hatchet), W.A.S.P. e Ozzy Osbourne (que contou com a participação especial do próprio Leslie West nas guitarras da sua versão). Na mesma linha musical da primeira faixa, outra composição que se tornou um "clássico" deste registro é "Never in My Life", cujo riff é um dos mais reconhecidos da discografia do grupo, e que surgiu de uma jam feita de improviso entre West e Laing, após Felix já ter ido para casa ao final de uma das muitas sessões diárias de ensaios (as quais chegavam a durar até dez horas, com a "mão de ferro" do produtor e baixista Papallardi comandando os músicos "de perto") feitas pelo grupo, com Corky ficando responsável pelas letras de mais este destaque do álbum.

Entre estas duas faixas mais "roqueiras", temos a calma (e linda) versão do Mountain para "Theme for an Imaginary Western", composição de Pete Brown e Jack Bruce registrada pelo ex-baixista do Cream em seu primeiro disco solo, Songs for a Tailor, lançado em 1969. Cantada por Papallardi, a faixa é uma das mais tocantes e melódicas da carreira do grupo, e se tornaria um destaque ao longo dos anos nos shows feitos pelo Mountain. Felix também assume os vocais principais em "The Laird", outra faixa de ritmo mais lento, onde a guitarra de West soa quase como uma cítara em certas partes, além de dividir o microfone com Leslie no encerramento do álbum, com a variada "Boys In the Band" (que mescla partes lentas e alternadas, além de dar destaque para o mellotron de Knight), na homenagem da banda ao festival de Woodstock na forma da balada "For Yasgur's Farm" (outra composição que se tornou um clássico da carreira do grupo, e que também dá bastante destaque para os teclados de Steve, além de apresentar outro solo maravilhoso de West - a "fazenda de Yasgur" foi o local onde o festival aconteceu, que, à época, era de propriedade do fazendeiro Max Yasgur) e na faixa que encerra o lado A do vinil original, a agitada e "estradeira" "Silver Paper", outra composição que se tornou bastante apreciada pelos fãs dentre as músicas gravadas pela banda em sua carreira.

"Sittin' On a Rainbow" é uma faixa "típica" de sua época, e poderia, facilmente, ser confundida com uma canção do já citado Bachman-Turner Overdrive ou de outros grupos do estilo na época, não fossem os vocais e a guitarra de West. Fechando o track list da versão original, temos a instrumental acústica "To My Friend", onde o violão de Leslie vai, como escreveu o jornalista Robert Christgau em seu livro "Christgau's Record Guide: Rock Albums of the Seventies", "do raga ao flamenco". Algumas versões posteriores em CD ainda trazem uma versão ao vivo de "For Yasgur's Farm" como bônus, além de "liner notes" escritas tanto por West quanto por Laing falando sobre o disco.

Contracapa da versão em vinil de Climbing!

Com pouco mais de trinta e dois minutos e arte gráfica a cargo da já citada Gail Collins, Climbing! chegou à décima sétima posição nas paradas dos Estados Unidos na época, com o single de "Mississippi Queen" chegando ao número 21 da parada da Billboard (o single de "For Yasgur's Farm" parou na posição 107, enquanto o de "Silver Paper" não chegou a figurar nas paradas). Infelizmente, a banda teria apenas mais dois anos de auge, com Papallardi se afastando do grupo devido a problemas de audição desenvolvidos graças ao altíssimo volume das apresentações ao vivo da turma. West e Laing formariam então o power trio West, Bruce and Laing ao lado do baixista e vocalista Jack Bruce, antes de retornarem com o Mountain para um último disco ao lado de Felix em 1974, o também recomendável Avalanche. Com a separação definitiva do Mountain após um show de despedida no Felt Forum de Nova Iorque em 31 de dezembro daquele ano, Papallardi foi trabalhar com o grupo japonês Creation, além de lançar um álbum solo em 1979 (intitulado Don't Worry, Ma), com West e Laing continuando juntos por um tempo na recém formada The Leslie West Band, antes de os dois saírem em carreiras individuais no final da década de 1970. O guitarrista e o baterista ainda tentariam algumas "voltas" do Mountain entre 1984 e 2007, gravando alguns álbuns que não conseguiram alcançar as glórias e os méritos daqueles registrados entre 1969 e 1974, sendo que estes discos, infelizmente, não puderam contar com a participação de Papallardi, assassinado com um tiro no pescoço dado por sua própria esposa em 17 de abril de 1983. West viria a falecer de um ataque cardíaco em 21 de dezembro de 2020, enquanto Laing continua a excursionar com sua própria banda ainda hoje, mantendo vivo, de certa forma, o nome do Mountain, grupo que, para mim e muitos outros, atingiu seu auge logo em sua estreia vinílica, o qual, segundo alguns, é o segundo disco da banda...

Track List:

1. Mississippi Queen
2. Theme For An Imaginary Western
3. Never In My Life
4. Silver Paper
5. For Yasgur's Farm
6. To My Friend
7. The Laird
8. Sittin' On A Rainbow
9. Boys In The Band

domingo, 12 de outubro de 2025

The Completers – The Completers [2025]


Por Micael Machado

Depois de dois compactos e um EP lançados entre 2017 e 2020, o quarteto gaúcho de pós-punk The Completers, formado por Felipe Vicente (vocal, guitarra e sintetizador), Jonas Dalacorte (guitarra), Lucas Richter (baixo) e Guilherme Chiarelli Gonçalves (bateria e pads), finalmente chega ao seu full lenght de estreia. Lançado em março deste ano pelo selo Yeah You! (nas versões CD, vinil - numa bela edição na cor vermelha - e K7, além de disponível nas hoje obrigatórias plataformas digitais), o disco, autointitulado, foi gravado entre janeiro de 2023 e agosto de 2024 (à exceção das baterias, gravadas ainda em 2019), com produção da própria banda, tendo a mixagem sido feita pelo guitarrista Jonas Dalacorte e a masterização ficado a cargo do estadunidense Carl Saff, que já trabalhou com nomes como Sonic Youth, Mudhoney e Fu Manchu. 

Nos pouco menos de quarenta minutos do álbum, o grupo apresenta várias das características típicas do pós-punk, como baterias secas (por vezes, soando quase como um instrumento eletrônico), linhas de baixo graves (que, muitas vezes, "guiam' as músicas, tomando a frente dos outros instrumentos), e guitarras mais preocupadas em criar "climas" para as canções do que em executar linhas e riffs mais impactantes (além de quase não haver solos do instrumento ao longo das composições). Os vocais não são tão graves quanto os de outros expoentes do estilo (e, certamente, menos derivativos do timbre adotado por Ian Curtis, do Joy Division, quanto aqueles usados em alguns lançamentos anteriores da banda), e as composições do quarteto geralmente fogem daquela linha "arrastada e depressiva" tradicional do pós-punk, incorporando algumas passagens mais velozes e "agitadas" do que o normalmente encontrado na "cartilha" do estilo, lembrando em muito algo feito em certas canções do já citado Joy Division, ou as composições do início da carreira do The Cure (sendo Wire e The Sound outras bandas citadas como influências pelo pessoal do grupo). As letras são mais pessoais e introspectivas, como mostram versos como "Nada resta dentro de mim/E, no final, nunca conseguimos o que merecemos", "Há uma cicatriz em meu coração/E sou o único que consegue senti-la", "Por todas as noites que passei sozinho/E os momentos em que percebi que não tinha ninguém além de mim", "As memórias de nós dois estão desaparecendo/E as imagens das risadas e dos choros já não existem mais" ou "Eu não pertenço a esta estrada que percorro", algo que, novamente, lembra os textos de Ian Curtis e do Joy Division.

The Completers: Felipe Vicente, Lucas Richter, Guilherme Chiarelli Gonçalves e Jonas Dalacorte

Das dez faixas do registro, duas já haviam aparecido nos lançamentos anteriores (as "rápidas" "End", que abre os trabalhos do disco, e já havia sido lado A do compacto de 2020, e "Silence", faixa título do compacto de 2017), as quais são destaques dentre o track list da estreia do The Completers, ao lado da longa "Hypnosis" (com mais de sete minutos quase todos instrumentais, e que, para mim, apresenta os melhores trabalhos de guitarra do álbum), da mais lenta "Bag Of Bones" (que apresenta um vocal um pouco mais grave que as demais composições do álbum) e de "Innocent Boy", uma composição mais "marcada", que vai construindo um angustiante clima em "crescendo" que, infelizmente, não chega a "explodir" como promete fazer ao longo de seus pouco mais de dois minutos e meio. "Past Year", outra faixa mais rápida que o usual no mandamento do pós-punk, foi escolhida como primeira faixa de trabalho do álbum, ganhando inclusive um vídeo clipe, dirigido pelo cineasta Theo Tajes.

A mais cadenciada "Please Me" tem um violão como destaque ao longo de sua duração, enquanto o uso dos teclados e sintetizadores, ao contrário do que ocorreu nas composições do EP Unspoken Signals, acabou bastante restrito neste álbum de estreia, sendo utilizado mais para criar "climas" em algumas poucas faixas, e alcançando um destaque maior apenas na marcada "Symptôma", em partes da citada "Hypnosis" e mais ao final da faixa de encerramento, "Mirage", que, com quase seis minutos, é a única (ao lado de "Hypnosis") a ultrapassar os cinco minutos, sendo que apenas a citada "End" e a lenta "Chemicals" (que lembra algo dos primeiros registros do Cure com Simon Gallup na formação) passam dos quatro minutos, com as demais ficando entre os dois minutos e meio e uma duração pouco maior que os três minutos. 

Contracapa da versão em vinil de The Completers

The Completers é uma bela estreia para o grupo porto-alegrense, que completou dez anos de existência neste 2025, e vem a somar bastante em um estilo musical que já não anda mais tão em alta no país quanto em décadas passadas, mas que ainda insiste em permanecer ativo e atuante, ainda que muitas vezes em bandas sem tanta divulgação e mais voltadas ao underground. Que um segundo registro completo não demore tanto quanto o primeiro, e que a carreira do quarteto ainda traga mais melodias para iluminar (ou escurecer de vez) as almas dos fãs do pós-punk pelo país. Aguardemos!

Track List:

1. End
2. Past Year
3. Symptôma
4. Chemicals
5. Hypnosis
6. Please Me
7. Silence
8. Bag Of Bones
9. Innocent Boy
10. Mirage

Os Replicantes – Os Replicantes 40 Anos [2025]

Por Micael Machado

No ano de 2024, o grupo de punk rock gaúcho Os Replicantes completou quatro décadas de atividades sobre os palcos. Para celebrar a ocasião, um show da banda foi marcado para o dia 16 de maio daquele ano no Bar Opinião, em Porto Alegre, exatamente quarenta anos depois da primeira apresentação "oficial" da turma, ocorrida em 16 de maio de 1984 no seminal Bar Ocidente, na capital gaúcha. Infelizmente, a tragédia climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul no começo daquele maio de 2024 (causando, dentre outras tragédias, a maior enchente da história do Estado) fez com que a apresentação fosse postergada, com a "festa punk" ocorrendo somente no dia 15 de agosto daquele ano, em um Opinião completamente lotado para celebrar junto à banda este aniversário tão marcante. Parte da apresentação d'Os Replicantes naquela noite foi lançada oficialmente agora em julho de 2025 no disco Os Replicantes 40 Anos, através de uma parceria dos selos independentes E-Discos.net e Made In Soul Records.  Com edição apenas em vinil (numa belíssima versão na cor preta esfumaçada, com capa gatefold e um encarte repleto de fotos e com a ficha técnica completa do show, tendo produção, mixagem e masterização a cargo de Lucas Hanke, da produtora Marquise 51), a bolachona traz alguns dos maiores clássicos da banda, além de algumas "surpresas" para os fãs de longa data.

Para esta apresentação especial, a banda reuniu, pela primeira sobre um palco, todos os integrantes que já passaram por seus diferentes "line ups" (eu mesmo já cheguei a assistir shows do grupo com as presenças de alguns músicos de formações anteriores em participações em ocasiões especiais, mas não com a totalidade dos oito membros e ex-integrantes da turma sobre o mesmo palco, na mesma noite). Desta forma, o disco (e a apresentação) começa com os integrantes da formação atual Cláudio Heinz (guitarras), seu irmão Heron Heinz (baixo) - ambos membros fundadores dos "Repli" - e a vocalista Julia Barth (no grupo desde 2006) junto ao baterista original Carlos Gerbase, que segurou as baquetas do quarteto desde sua fundação até 1989. Logo na segunda música, Julia cede lugar ao cantor original da turma, o "punk brega" Wander Wildner, que comanda o microfone nas próximas duas músicas, marcando a reunião da formação inicial dos Replicantes em uma apresentação ao vivo sei lá eu quantos anos depois da última vez de Wander, Cláudio, Heron e Carlos juntos sobre um palco em suas funções originais (talvez desde 1989?), antes do cantor passar o posto de "front man" para Gerbase, como já havia ocorrido antes na história do grupo, quando Carlos saiu de trás da bateria para se tornar a voz principal do grupo. Assim como ocorreu no passado, junto à troca de funções de Gerbase também chegam ao palco (e, metaforicamente, à própria banda) o baterista Cleber Andrade e a tecladista e cantora de apoio Luciana Tomasi (neste show, restrita apenas ao microfone). Neste disco, Gerbase permanece no posto por três canções, tendo, em uma delas, a companhia do saxofonista Ricardo "King Jim" Cordeiro, ex-integrante dos Garotos da Rua (outra importantíssima banda gaúcha no cenário do rock and roll), e que chegou a integrar os "Repli" na formação que gravou e divulgou o disco Andróides Sonham com Guitarras Elétricas, de 1990. Com a saída de Gerbase, Luciana e King Jim do palco (e, como ocorreu no passado, da própria banda), Wander volta ao microfone para cantar "Astronauta", representando sua segunda passagem pelo grupo, ocorrida entre 2002 e 2006, antes de sair novamente (do palco e da banda), dando lugar a Julia, que assume o microfone nas cinco primeiras músicas do Lado B, onde temos então a presença apenas da formação atual do quarteto (Julia, Cláudio, Heron e Cleber), com o LP terminando com as duas faixas do bis daquela noite, as clássicas "Surfista Calhorda" e "Festa Punk", onde os versos são divididos pelos três vocalistas que já ocuparam esta função na banda, além das presenças de Luciana e King Jim nos backings.

Detalhe da bela edição em vinil preto esfumação, além do encarte e contracapa do disco Os Replicantes 40 Anos

A gravação do show, mesmo feita de forma independente, ficou muito acima da média (só achei a guitarra meio "magrinha" em certos momentos, mas nada que estrague a experiência), e o repertório escolhido para o disco, mesmo que não traga a íntegra do que aconteceu no Opinião naquela noite (um vídeo amador, facilmente encontrável no Youtube no momento em que escrevo, mostra um repertório de vinte e cinco músicas interpretadas na ocasião, contra as quatorze que constam da bolachona), serve como uma excelente representação dos momentos mais importantes da carreira dos Replicantes, ainda que muito focado nos dois primeiros discos (na minha opinião, os melhores e mais importantes da trajetória dos Repli), sendo que a faixa mais "lado B" seja, possivelmente, "Tom & Jerry", que não costuma aparecer com muita frequência nos set lists da banda (e que sempre foi uma das minhas favoritas dentre a carreira da turma), ainda que o repertório completo da noite tenha contado com várias outras canções mais "obscuras" dentro da discografia do grupo.

Em certo ponto do disco, em uma das poucas interações entre banda e plateia mantidas na versão final do vinil (no citado vídeo, elas acontecem com frequência bem maior), Julia anuncia que a apresentação estava sendo filmada. Resta aguardar que estas imagens sejam liberadas oficialmente algum dia, bem como o restante das músicas interpretadas naquela marcante noite de agosto de 2024, talvez em um "volume dois" deste disco que já é, desde seu lançamento, um marco histórico do movimento punk no Rio Grande do Sul. Afinal, quarenta anos não são quarenta dias, e os Replicantes não são uma banda qualquer no cenário gaúcho! Que muitos anos mais ainda venham a manter o grupo sobre os palcos e pelos estúdios, nos presenteando com mais "festas punks" como a registrada neste vinil. Obrigatório!

Contracapa do vinil Os Replicantes 40 Anos

Track List

Lado A

1. Nicotina

2. Sandina

3 O Futuro É Vortex

4. Boy Do Subterrâneo

5. Hippie Punk Rajneesh

6. Só Mais Uma Chance (Pin Up)

7. Astronauta

Lado B

1. Tom & Jerry

2. Motel Da Esquina

3. Punk De Boutique

4. Libertá

5. Maria Lacerda

6. Surfista Calhorda

7. Festa Punk

sábado, 23 de agosto de 2025

Ministry – Hopiumforthemasses [2024]


Por Micael Machado

Três anos depois de Moral HygieneAl Jourgensen e seus asseclas estão de volta com um novo álbum do Ministry, o qual, arrisco a dizer, corre grande risco de ser o melhor disco da banda desde Houses Of The Molé, de 2004. Além de ter mais riffs marcantes e músicas interessantes do que seus últimos lançamentos (que estavam longe de serem ruins, mas, honestamente, ficavam um nível abaixo do "padrão de qualidade" que a banda nos acostumou durante a década de 1990), o "chefão" Al parece ter ouvido os discos antigos do grupo e resgatou deles o uso de samplers com vozes e citações retiradas de filmes, discursos políticos e programas e noticiários de TV, os quais se integram nas músicas e acabam se tornando parte das letras das mesmas, embora não constem nos textos do encarte. Estes samplers aparecem com ênfase nas duas primeiras faixas, a pesada e arrastada "B.D.E." (iniciais de "Big Dick Energie", cuja letra critica aquilo que, aqui no Brasil ficou conhecido como "cultura Red Pill") e a rápida (e altamente indicada para quem gosta do estilo Metal Industrial praticado pelo Ministry) "Goddamn White Trash", que conta com participação de Pepper Keenan, do Corrosion Of Conformity, nos vocais, e cuja letra se posiciona contra os supremacistas brancos que assolam os Estados Unidos atualmente, além destes efeitos também terem destaque em "TV Song 1/6 Edition", uma das faixas mais rápidas do disco, e, possivelmente, a que mais lembra os "bons tempos" de discos como The Mind Is A Terrible Thing To Taste ou Psalm 69.

Outra que parece saída de um destes dois álbuns é "Just Stop Oil", quase uma "nova versão" da clássica "Just One Fix", e cuja letra alerta (mais uma vez) para os perigos do aquecimento global. Já "New Religion", que tem um dos melhores riffs do álbum, parece vinda de uma fase um pouco posterior, da época do citado Houses Of The Molé ou de seu anterior, Animositisomina. "Aryan Embarrassment" é marcada e pesada, além de trazer novamente a participação especial de Jello Biafra (ex-vocalista dos Dead Kennedys) nos vocais, além de possuir uma das letras mais fortes do disco, com Jello novamente criticando os supremacistas brancos norteamericanos sem nenhuma papa na língua, em frases como "Como as pessoas podem concordar com isto? A democracia se transforma em poeira, em uma guerra ao voto que faz a América odiar novamente. É tudo tão estúpido!".

Alguns dos músicos que participaram das gravações de HopiumforthemassesMonte Pittman (guitarras/baixo), John Bechdel (teclados), Paul D'Amour (baixo), Al Jourgensen (vocais, guitarras e programações), Roy Mayorga (bateria) e Cesar Soto (guitarras/baixo)

Como nos álbuns mais recentes, as letras das músicas são muito importantes para passar a visão que Al tem do mundo atual, a qual pode ser resumida em frases como "Esta é nossa realidade/Este é o fim de nossa sociedade/Parece ser o fim dos tempos/E não é bonito", que ele canta em "It's Not Pretty", outra faixa veloz (com mais um riff bastante interessante), mas que começa de forma leve e acústica, quase confundindo os mais desinformados na carreira do grupo. Quase todas as faixas tem um alvo específico, os quais, além dos já citados acima, também atacam a extrema direita que toma conta da política mundial (em "TV Song 1/6 Edition"), o mercado de capitais que guia os verdadeiros rumos do mundo (em "New Religion") e até contra a guerra Rússia x Ucrânia, em "Cult of Suffering", que traz os vocais de Eugene Hütz, do Gogol Bordello, em uma faixa com trechos cantados em ucraniano, e cuja letra no encarte estampa a frase "Ministry apoia a Ucrânia" na página onde ela aparece.

Assim como no disco anterior, Al Jourgensen (que, aqui, além da produção e dos vocais, também se ocupa de guitarras, baixo, teclados e programações) optou por não ter uma formação fixa para o seu Ministry, embora a maioria dos músicos envolvidos na gravação de Hopiumforthemasses também tenham participado de Moral HygieneMichael Rozon (responsável pelas programações e alguns teclados) e o guitarrista e baixista Cesar Soto ainda são os "parceiros de crime" mais constantes ao longo das faixas, mas desta vez, Cesar divide as funções quase igualmente com Monte Pittman, guitarrista que já tocou com Prong, Body Count e até com a diva Madonna (ela mesma). Roy Mayorga volta a empunhar as baquetas do Ministry (desta vez em três faixas), assim como Paul D'Amour se ocupa do baixo em uma música (e da guitarra em outra) e John Bechdel se encarrega dos teclados em outra. Além dos convidados já citados nos vocais, também temos as participações (em diferentes faixas) do guitarrista Billy Morrison, do tecladista Charlie Clouser, além de vocais adicionais de músicos como Atticus Pittman, Liz Walton, Victoria Espinoza, Dez Cuchiara e Joshua Ray.

Contracapa de Hopiumforthemasses

A citada "Cult of Suffering" é, musicalmente, uma das faixas mais "diferentes" do disco, com um ritmo mais leve e até algum suingue, em uma composição que dá destaque ao que parece soar como um órgão Hammond (tocado, seguindo o encarte, pelo próprio Jourgensen) e que soa quase como uma inofensiva composição pop, e que só não é mais "estranha" no contexto do disco do que a faixa de encerramento, "Ricky's Hand", cover do cantor britânico Fad Gadget (do qual, confesso, eu nunca tinha ouvido falar anteriormente) totalmente eletrônico, com um ritmo quase dançante (e praticamente sem a participação das guitarras) que remete à fase inicial da carreira do Ministry, onde o grupo se dedicava muito mais o synth-pop da época (início dos anos 1980) do que ao metal industrial que adotaria no final daquela década e início da seguinte. Esta fase, inclusive, foi "revisitada" em The Squirrely Years Revisited, álbum de regravações lançado no início deste 2025, o qual, infelizmente, ainda não teve edição nacional. Ainda em 2024, Jourgensen declarou que o próximo álbum de inéditas seria o último da carreira do grupo, além de marcar o retorno do baixista Paul Barker, que fez parte da formação da banda entre 1986 e 2003, e foi o principal parceiro de composições de Al nos "tempos áureos" do grupo. Nem uma coisa nem outra foram confirmadas enquanto escrevo este texto, mas o fato é que, com o retorno de Donald Trump (antigo desafeto de Jourgensen) à Casa Branca e com o mundo cada vez mais pendendo para o lado da extrema direita, duvido que o líder do Minstry vá abandonar sua principal plataforma de comunicação. Afinal, como ele mesmo canta em "Just Stop Oil", "Nós temos algo a dizer, e não há mais como adiar"! Afinal, o mundo, certamente, ainda precisa das letras (e das músicas) do Ministry para tentar acordar!

Track List:

1. B.D.E.
2. Goddamn White Trash
3. Just Stop Oil
4. Aryan Embarrassment
5. TV Song 1/6 Edition
6. New Religion
7. It's Not Pretty
8. Cult Of Suffering
9. Ricky's Hand

Monster Magnet – 25............TAB [1991]

Por Micael Machado

Existem certos discos que exigem uma "dedicação" maior de quem se dispõe a lhes escutar, pois a audição dos mesmos pode ser bastante "complicada" e "difícil" para este corajoso ouvinte. Metal Machine Music, de Lou Reed, e Arc, de Neil Young, se encaixariam nessa categoria, pois são, basicamente, ruídos de feedback e distorções de instrumentos reunidos em uma "canção" contínua composta, basicamente, apenas de "barulhos"... Certamente, há outros exemplos de álbuns com estas características, e um deles foi gravado pela banda norte-americana Monster Magnet em 1991, mas foi lançado no país de origem do grupo apenas em 1993...

Tendo lançado duas demos como um trio ainda no ano de sua fundação, em 1989, o Monster Magnet registrou um single de estreia para a gravadora Circuit Records no ano seguinte (já como quarteto), e um EP de seis faixas também em 1990 pela gravadora alemã Glitterhouse Records, antes de assinar com o selo Caroline Records (na época, estabelecido nos Estados Unidos), o qual lançou o single "Murder/Tractor" pela sua subsidiária Primo Scree também em 1990. Com a boa repercussão do single, a Caroline autorizou a banda a entrar no estúdio para gravar seu primeiro álbum, mas as três faixas resultantes (totalizando mais de 48 minutos) acabaram rejeitadas pela gravadora, fazendo com que o quarteto (formado, então, por Dave Wyndorf nas guitarras e vocais, John McBain na guitarra solo, Tim Cronin no baixo e Jon Kleiman na bateria) voltasse ao estúdio (não sem antes repor Cronin, que passou a cuidar da parte de luzes dos shows ao vivo, pelo baixista Joe Calandra) para gravar novas composições (além de regravar duas faixas de seu primeiro EP e registrar uma cover para "Sin's A Good Man's Brother", do Grand Funk Railroad) e lançar, já em 1991, seu álbum de estreia, chamado Spine of God. Uma turnê pelos EUA em suporte ao Soundgarden para divulgação do primeiro disco completo do Monster Magnet chamou a atenção da gravadora A&M Records, que assinaria com a banda em 1992 e lançaria seu segundo full lenghtchamado Superjudge, no começo de 1993.

A melhor divulgação da major A&M e a boa recepção do público ao segundo álbum do Monster Magnet acabaram levando o nome da banda a plateias maiores, fazendo o grupo ser considerado um "sucesso menor" nos EUA, e um dos precursores do Stoner Metal no país. Quando viu o quarteto em alta nas paradas, aparentemente, a gravadora Caroline "se lembrou" daquelas faixas rejeitadas de 1991, e decidiu lançar as mesmas nos Estados Unidos, no formato de um EP de três faixas chamado 25............TAB, naquele mesmo 1993. O mini-álbum já havia sido lançado na Alemanha pela citada Glitterhouse Records ainda em 1991, mas foi somente com a versão da Caroline (a qual, inclusive, conta com uma capa diferente da versão européia original) que a bolachinha acabou chegando de vez ao grande público.

Capa da versão alemã original de 25............TAB

Se você conhece o Monster Magnet pelos álbuns gravados após este EP, não espere encontrar aqui quase nada do que está acostumado. Se, após Spine of God, o Imã de Monstros se tornaria um dos pilares do Stoner Rock norte-americano, aqui o quarteto ainda era uma banda muito mais voltada a uma sonoridade "psicodélica" e "viajante". No encarte de uma das muitas reedições posteriores, Wyndorf escreveu nas "liner notes" que o grupo "estava ouvindo muito Hawkwind, Amon Duul II, Alice Cooper e Skullflower quando compomos este disco". Os pouco mais de quatro minutos de "Lord 13", a menor faixa do EP, são possivelmente a coisa mais "acessível" do álbum, embora passem longe do estilo que a banda adotaria depois (soando quase como algo das bandas psicodélicas de San Francisco do final dos anos 60, com sua percussão e sonoridade quase acústicas). Já os mais de doze minutos de "25/Longhair" são divididos em uma faixa rápida e mais focada na guitarra durante "25" (que ocupa aproximadamente os oito primeiros minutos da canção) e um pouco mais cadenciada em "Longhair", uma jam instrumental que talvez seja a música deste EP com o estilo mais próximo da sonoridade que o grupo iria adotar em seus lançamentos posteriores, e que, infelizmente, termina com um "fade out" que nos deixa com vontade de escutar mais desta canção.

Embora  "25" tenha algumas "viagens lisérgicas" ali pelo meio, acredito que nada prepare o ouvinte para o que ele irá escutar nos mais de trinta e dois minutos da faixa de abertura, intitulada "Tab". Sobre uma sólida e repetitiva base formada pelo baixo e pela bateria, guitarras "viajantes" se misturam a efeitos eletrônicos e distorções diversas, além de vocalizações quase orientais e falas diversas (e distorcidas por efeitos sonoros variados, como ecos e repetições), formando uma das faixas mais abstratas e "psicodélicas" que eu já ouvi de uma banda (supostamente) de hard rock, e a qual é impossível descrever em detalhes aqui. No mesmo encarte citado antes, Wyndorf explica que " 'Tab' foi uma das primeiras coisas que fizemos como banda. Há uma versão realmente crua dela em nossa primeira demo, e (para a versão que saiu no EP) foi feita apenas uma mixagem dela, devida à sua duração e porque não tínhamos muito dinheiro para gravar". Ainda nessas "liner notes", o vocalista explica que o EP "foi a última coisa que Tim (Cronin) gravou antes de passar para a parte de iluminação", e que "não tocamos muita coisa desse álbum ao vivo (depois de gravá-lo), acho que fizemos '25' umas duas vezes, e foi só".

Contracapa da versão americana de 25............TAB

Como escrevi acima, o EP chegou a ser lançado na Alemanha (em vinil e CD) ainda em 1991 (dois anos antes de seu lançamento oficial nos EUA, portanto). Ele foi relançado pelo selo Steamhammer em 2006, também na Alemanha, com uma versão ao vivo da faixa "Spine Of God" como bônus (a mesma versão seria relançada em 2017 pela Napalm Records tanto na Europa quanto nos EUA), sendo que existe ainda uma versão da Caroline Records (presumidamente de 1994) que agregou o single "Murder/Tractor" às três faixas originais, embora as faixas do compacto apareçam como "hidden tracks" na versão em CD (que, particularmente, é a que possuo). Seja em qual edição for, tenho certeza que nada irá lhe preparar para o estranhamento de ouvir algo como "Tab". Encare por sua própria conta e risco, e, caso enfrente o desafio, tenha uma boa "viagem sonora". Afinal, como diz uma nota no encarte de Spine of God, "it's a satanic drug thing... you wouldn't understand" (deixo a tradução para vocês...).

Track List:

1. Tab

2. 25 / Longhair

3. Lord 13

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Tralhas do Porão: The Immediate All-Stars, o supergrupo que nunca existiu


Por Micael Machado

Você certamente já ouviu falar (e deve ter escutado muito) de grupos como Yardbirds, Cream, Led Zeppelin e Rolling Stones. Mas você já ouviu falar do The Immediate All-Stars, um "supergrupo" que reuniu músicos com passagens pelas bandas citadas, lançou algumas músicas na década de 1960, mas nunca fez nenhum show, ou sequer (no caso de uma das suas formações) se reuniu em uma sala de ensaios ou de gravações? Pois é da história desta curiosa formação que venho tratar neste texto. Sente-se confortavelmente em sua poltrona favorita, e vamos ao papo:

Tudo começa em meados de 1965, quando Jimmy Page, já então um reconhecido músico de estúdio na Inglaterra, foi contratado pelo empresário dos Stones, Andrew Loog Oldham, para atuar como produtor para o recém-formado selo Immediate Records, de propriedade de Oldham e do empresário Tony Calder. Dentre vários grupos que Page produziu para o selo, estavam os membros remanescentes da banda Cyril Davies And His Rhythm And Blues All Stars, um combo de blues que havia se "desintegrado" após a morte do guitarrista Cyril Davies em 1964, e que gravou algumas sessões para o selo Immediate naquele ano, ao que pude apurar, com o próprio Page como guitarrista substituindo o falecido Davies. Pouco tempo depois, Jimmy agendou outra sessão com estes músicos, desta vez tendo como guitarrista o genial Jeff Beck (amigo de longa data de Page, e indicado por ele para substituir Eric Clapton nos Yardbirds). Beck foi acompanhado nestas gravações por um trio formado pelo baterista Carlo Little, pelo baixista Cliff Barton e pelo pianista Nicky Hopkins (que depois viria a colaborar com grupos como Rolling Stones e The Who, dentre outros), todos eles ex-membros da All Stars original; porém, não posso afirmar serem estes os mesmos músicos da primeira sessão citada. Esta formação ficou conhecida como The Allstars Featuring Jeff Beck, e registrou cinco faixas instrumentais para o selo de Oldham e Calder, sendo que Page participa como guitarrista em pelo menos duas destas gravações (as "agitadas" "Down in the Boots", onde o baixo de Barton aparece com bastante destaque, e "LA Breakdown", com destaque total para o piano de Hopkins, sendo que Page tem uma participação bastante discreta no arranjo nas duas composições), com Hopkins assumindo o protagonismo em "Piano Shuffle" (que, como o nome deixa claro, é um agitado shuffle liderado pelo piano), e Beck sendo o solista em "Chuckles" (um blues mais "agitado" em que a rascante guitarra de Jeff divide atenção com o piano de Hopkins) e em "Steelin'" (um blues mais "tradicional" de 12 compassos, onde Hopkins novamente divide o destaque com Beck), a qual foi a primeira destas faixas a ser lançada, inicialmente como "lado B" de um compacto feito pela Immediate ainda em 1965 para tentar promover uma carreira musical para o fotógrafo de moda londrino David Anthony, e que foi creditada apenas a Anthony (que adotou o pseudônimo 'Charles Dickens' para estas sessões), sem citar os músicos envolvidos.

Guitar Boogie, compilação cuja versão alemã reuniu primeiro as faixas gravadas pela Allstar tanto com Beck quanto com Clapton

Meses depois, ainda em 1965, Page convidou Eric Clapton (amigo de longa data do então produtor da Immediate, sendo que os dois já haviam feito diversas jams pelos palcos londrinos desde 1962, além de Page ter produzido algumas gravações dos Yardbirds enquanto Clapton ainda era guitarrista do grupo) para uma jam session em seu estúdio caseiro de Londres. Os dois registraram sete "improvisos" instrumentais baseados no blues, apenas com as duas guitarras, e sem nenhum interesse de lançamento comercial. Porém, Jimmy, empolgado com o resultado, acabou comentando sobre as gravações com Oldham, e, pouco depois, os representantes da gravadora "intimaram" Page a lhes entregar as fitas originais, alegando que, como empregado do selo, as gravações feitas pelo guitarrista pertenceriam, por direito, à Immediate. Temendo um processo judicial, Page entregou as fitas à gravadora, porém os alertou que elas não tinham qualidade suficiente para serem lançadas. Vendo o potencial comercial que aquela associação poderia trazer (Clapton estava então tocando com os Bluesbreakers de John Mayall, sendo esta mais ou menos a mesma época em que as pichações de "Clapton Is God" começaram a surgir em Londres), os representantes do selo pediram a Page que "completasse" as faixas, visando um futuro lançamento destas. O produtor então chamou seus amigos Ian Stewart (pianista dos Rolling Stones à época) e Bill Wyman (baixista dos mesmos Stones), além do baterista Chris Winters (que a maioria das fontes que encontrei afirmam ser, na verdade, Charlie Watts, baterista também dos Stones, que teria adotado o pseudônimo por questões contratuais), para gravar bases para as faixas que ele havia registrado pouco antes com Clapton (detalhe é que Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, acabou comparecendo também às sessões, embora tenha apenas tocado harmônica - ou "gaita de boca", como o instrumento também é conhecido - nestas gravações).

As sete faixas instrumentais registradas por Page e Clapton passam por estilos diferentes de Blues, estilo ao qual Clapton era radicalmente devoto à época (sendo que a inclinação para uma sonoridade mais "comercial" foi o principal motivo para sua saída dos Yardbirds no começo daquele 1965). Enquanto "Choker" é um agitado rhythm and blues (onde os dois guitarristas dividem os solos, embora não haja um "duelo" entre eles) que, infelizmente, termina em um "fade-out" com gosto de "quero mais", "Snake Drive" representa aquele tipo de blues mais "arrastado", sendo a mais lenta de todas estas gravações. As faixas "Draggin' My Tail" e "West Coast Idea" já são aquele tipo de blues mais "lento" (embora não tão "arrastado" quanto a anterior), sendo que Wyman parece tocar um contrabaixo acústico na segunda, enquanto Clapton e Page novamente dividem os solos na primeira (que, a meus ouvidos, é a única das sete a contar com a harmônica de Jagger).

"Freight Loader" também segue esta estrutura mais "lenta" do blues, e, curiosamente, não conta com o acompanhamento da banda de apoio, assim como "Tribute To Elmore" (que, acredito, seja dedicada a Elmore James, lendário bluesman norte-americano, e ídolo tanto de Page quanto de Clapton) e "Miles Road", duas faixas onde Page "segura" a base naquele andamento mais "tradicional" do blues de doze compassos para Clapton "debulhar" na guitarra solo, especialmente na segunda, que parece "clamar" por um acompanhamento da seção rítmica, algo que, infelizmente, não acontece - cabe ainda citar que esta formação da Allstar com Clapton/Page/Stewart/Wyman/Winters (ou Watts)/Jagger ficou conhecida como The Immediate All-Stars, para diferenciar da formação com Beck, e foi a tal "banda" que nunca se reuniu sequer em uma sala de ensaios antes de ter suas músicas lançadas, pois as gravações da seção rítmica foram feitas em sessões separadas daquelas com os dois solistas.

White Boy Blues, compilação que reúne as doze faixas gravadas pela Allstar

Todas as músicas citadas são bem curtas (apenas "Down in the Boots" e "Draggin' My Tail" ultrapassam os três minutos, a segunda por apenas sete segundos, sendo que "Choker" não chega sequer aos dois minutos), e servem mais como "curiosidades" para os fãs dos três gênios da guitarra citados do que como "faixas obrigatórias" na carreira dos músicos. As doze faixas gravadas nas sessões com Beck e Clapton foram, ao que consegui apurar, lançadas inicialmente nos três volumes da coleção Blues Anytime: An Anthology of British Blues, que a Immediate Records colocou no mercado em 1968 (sendo que as cinco faixas com Beck aparecem no terceiro volume, disco cuja capa abre esta matéria, e as sete com Clapton estão espalhadas pelos três registros da coleção). O lançamento comercial destas gravações (algo com o qual Page alega até hoje não ter tido nenhum envolvimento, nem ter recebido nenhum centavo por isto) "azedou" a amizade entre o produtor e Clapton, que considerou o ato como uma "traição" do amigo (visto que as faixas onde os dois tocam juntos não haviam sido gravadas com esta intenção), e levou os dois a se afastarem por quase vinte anos, segundo conta a história (não sei quando nem como os dois "fizeram as pazes", mas parece que eles vieram a se "entender" tempos depois).

Não consegui identificar quais as faixas gravadas por Page com a All-Stars na primeira sessão, ocorrida antes das gravações com Beck, nem se Beck efetivamente participa das duas faixas com Page registradas na segunda sessão citada no texto (embora todas as fontes indiquem que os dois guitarristas tocam em “Down in the Boots” e “LA Breakdown”, me parece haver apenas uma guitarra ali, que, pelo que apurei, seria de Page). Mas, de todo modo, existem compilações de Beck onde pelo menos quatro das cinco faixas citadas (com “Piano Shuffle” sendo a exceção) aparecem creditadas ao guitarrista, então…

Aparentemente, a gravadora Immediate usou o nome All-Stars em outras gravações feitas posteriormente para o selo (inclusive, existe uma faixa que é “lado B” do single “The First Cut Is the Deepest”, de PP Arnold, lançado em 1976, e que saiu sob o nome The Immediate All Stars – a faixa, chamada “King Of Kings, ao que apurei, teria sido gravada em 1967, mas não sei quais os músicos envolvidos), porém, ao que pude apurar, apenas a “marca” foi usada, utilizando outros músicos que tinham contrato com o selo na época, e sem nenhuma ligação a Page, Beck, Clapton ou aos músicos dos Stones.

Em 1971, a versão alemã da compilação Guitar Boogie reuniu as sete faixas registradas com Clapton a quatro das cinco faixas registradas com Beck (apenas "Piano Shuffle" ficou de fora, sendo que "Miles Road" não aparece nas versões internacionais da coletânea). As doze faixas aparecem espalhadas ao longo dos quatro lados da versão em vinil da compilação White Boy Blues, de 1984, junto a faixas de grupos como John Mayall & The Bluesbreakers, Cyril Davies And The All Stars, Santa Barbara Machine Head e Jeremy Spencer. As faixas com Beck aparecem aqui e ali em diversas coletâneas do guitarrista (embora a única em que eu tenha encontrado as cinco juntas seja a compilação British Blues Heroes, de 1990, que também apresenta músicas de outros artistas), enquanto as sete faixas de Clapton foram reunidas em parte da compilação dupla The Early Clapton Collection, de 1987 (que também apresenta faixas gravadas pelo guitarrista com os Yardbirds e com o John Mayall's Bluesbreakers, e que foi onde as conheci, sendo este o registro responsável pela confecção deste texto, pois nunca antes eu havia ouvido sequer falar da existência da All-Stars, sendo que acho curioso que o grupo não é sequer citado nem na biografia de Clapton, nem no livro Luz e Sombra, que aborda a carreira de Page), sendo que a compilação Eric Clapton & Friends: The Early Years, lançada em CD e K7 em 1991, reúne cinco destas faixas (e ainda credita erroneamente "Snake Drive" e "Tribute To Elmore" a John Mayall & The Bluesbreakers). 

Como escrevi, nenhuma destas faixas vai mudar a sua visão sobre a carreira ou o talento de nenhum dos envolvidos. São "apenas" blues instrumentais executados por alguns dos melhores músicos do estilo que perambulavam pelos estúdios de Londres naquele ano de 1965. Achei esta uma história bastante curiosa, porque a existência de um grupo reunindo músicos dos Yardbirds e Stones (e gente que, futuramente, seria do Cream e do Led Zeppelin) – e até “Deus” (no caso, Clapton) – deveria ser mais “lendária” e “famosa’ do que é, e, antes de conhecer a compilação do Clapton que citei no texto, eu nunca havia escutado sequer menção a estas gravações! Acho o fato destas gravações terem ficado “escondidas” em algum canto da história, pelo menos, muito curioso! Se sua "praia" sonora for a do blues mais "tradicional", pode conferir sem medo, pois não há nenhum risco de se arrepender do que você irá escutar. Boa audição!

domingo, 27 de abril de 2025

R.E.M. - Green [1988]


Por Micael Machado

No começo de 1988, o grupo norte-americano R.E.M. trocava a gravadora independente I.R.S. pela "major" Warner Bros., em uma negociação que levou muitos de seus fãs a acusá-los de "vendidos", devido ao fato de o grupo ter construído sua reputação e sua carreira inteira (que contava, à época, com cinco álbuns de estúdio e um EP) sob as "asas" do selo "menor", o que os levou a um grande reconhecimento no setor das "college radios" americanas, e os tornou um dos grupos favoritos do chamado "rock alternativo" de então. Mas o quarteto, formado à época por Michael Stipe nos vocais, Peter Buck nas guitarras, Mike Mills no baixo e Bill Berry na bateria, estava frustrado com as cobranças da I.R.S. por vendas cada vez maiores, além de não concordarem com a estratégia de divulgação e distribuição do selo para a banda fora dos EUA. A promessa de total liberdade criativa e de uma distribuição melhor por parte da Warner foi decisiva para que o grupo fechasse um acordo com a nova gravadora (ainda que, financeiramente, a proposta não fosse a mais vantajosa), e assim, em março de 1988, o grupo começou a registrar as demos do que viria a ser o seu sexto disco, novamente produzido por Scott Litt (que já havia trabalhado com o grupo no álbum anterior, Document, de 1987), e que viria a ser lançado em 8 de novembro de 1988, sob o nome Green.

Ainda na fase de demos, segundo o belo texto de Allan Jones (editor da revista Uncut) presente no encarte da edição de vigésimo quinto aniversário do disco (voltaremos a ele mais tarde), Stipe havia pedido a seus colegas que não escrevessem mais canções "típicas" do R.E.M.. Havia por parte dos músicos uma ideia de mudar a sonoridade característica do grupo (descrita, segundo Buck em entrevista da época, como "coisas semi-folk, semi-rock, semi-baladas, compostas em tons menores e enigmáticos"), de evitar repetições, de trilhar novos "caminhos" musicais nas novas composições do quarteto. "Pop Song 89", a faixa que abre Green, já demonstra esta ideia, pois, ainda que a guitarra de Buck ainda ecoe a fase anterior da banda (em seus timbres e na melodia de seus riffs, especialmente no tema "solo" que se repete ao longo da música), o restante da composição traz uma aura "pop" e "mainstream" que poucas vezes havia aparecido no catálogo do grupo até então. "Get Up" e "Stand", outras duas faixas do álbum (onde destaco os sempre bem colocados e executados backing vocals de Mills - e de Berry também, como podemos conferir nos vídeos do período), também tem esta sonoridade mais "acessível", tanto que todas foram lançadas como singles, ajudando na divulgação e no reconhecimento do álbum (que foi o primeiro registro do grupo a receber disco de ouro - e depois de Platina - na Inglaterra, além de atingir Platina Dupla nos EUA e no Canadá e Ouro na Nova Zelândia e na Espanha) e a difundir mundialmente o nome do R.E.M., como a banda desejava então.

O R.E.M. em 1988: Bill Berry, Michael Stipe, Peter Buck e Mike Mills

A busca por novas sonoridades também levou o grupo a experimentar com novos instrumentos, e até com trocas de posição na "escalação" do "time R.E.M.". Com Berry no baixo, Mills no acordeão e Buck no mandolin (instrumento que o músico ainda estava recém aprendendo a tocar, segundo o texto de Jones), foi registrada a acústica "You Are the Everything", uma das mais belas baladas da carreira do grupo. O mandolin de Buck também é destaque em "Hairshirt" (também com Berry no baixo, mas com Mills deslocado para o órgão) e "The Wrong Child", duas faixas que seguem uma linha musical parecida com a de "...Everything", porém sem, na minha opinião, alcançar os mesmos níveis de excelência (especialmente a segunda, onde o dueto entre Mills e Stipe e alguns tons mais altos alcançados pela voz do segundo sempre me incomodaram um pouco).

"Orange Crush" (primeiro single lançado para divulgar o álbum) e "Turn You Inside-Out" (que conta com o convidado Keith LeBlanc na percussão, e é a música que fez com que eu realmente me apaixonasse pelo R.E.M., junto com "You Are the Everything", quando as conheci assistindo na televisão ao documentário Tourfilm, como já contei em outro texto para o site) estão dentre as coisas mais "pesadas" já gravadas na carreira da banda, enquanto a sombria "I Remember California" e, principalmente, a bela "World Leader Pretend" (que conta com as participações especiais dos músicos convidados Jane Scarpantoni no cello e Bucky Baxter na Pedal Steel Guitar) são as que mais lembram a fase anterior do grupo ("...Pretend" ainda ficou com o "mérito" de ser a primeira música a ter sua letra publicada no encarte de um disco da banda, algo que não se tornaria assim tão comum nos lançamentos posteriores da carreira do R.E.M.).

Lançado à época em CD, LP e K7 (além de ter uma versão promocional com capa em cores diferentes, mais escuras e sombrias, que vinha em uma caixa coberta por um tecido com o nome da banda e do disco gravados em baixo-relevo, marcando a primeira vez que a gravadora lançava uma "edição especial" para um álbum do R.E.M., algo que viria a se repetir em todos os discos posteriores - menos no último -, como já explicado em uma série de quatro partes aqui no site), Green ainda conta com uma espécie de "faixa escondida", oficialmente sem título, e que, por isto mesmo, passou a ser conhecida como "Untitled". Com Buck na bateria e Berry na guitarra, a faixa é, segundo o citado texto de Jones, uma "oração sussurrada por um mundo ferido", "tão cheia de uma vulnerabilidade maravilhosa que nem precisa de um nome, pois seria perfeita seja como fosse chamada". Honestamente, não ouço tudo isto em mais uma faixa com acenos ao pop, mas sem se afastar totalmente do alternativo, como as três primeiras faixas citadas, as quais, a meu ver, conseguem resultados auditivos muito melhores do que a faixa de encerramento deste que é um dos meus registros favoritos na carreira do R.E.M..

Contracapa da versão em CD de Green

A excursão para promover Green durou onze meses, e, ainda durante esta tour, o grupo passou a incorporar em suas apresentações as faixas "Low" e "Belong", que só viriam a ser registradas oficialmente em seu próximo disco de estúdio. As duas aparecem, ainda em versões "embrionárias", no CD bônus que acompanha a citada edição de vinte e cinco anos lançada em 2013 (há ainda uma outra edição lançada em 2005, que contém como bônus um DVD-áudio com uma mixagem em 5.1 surround e alguns extras, como um documentário e uma galeria de fotos), a qual, além do álbum remasterizado, ainda traz parte de um show feito pelo grupo na cidade de Greensboro, na Carolina do Norte, em 10 de novembro de 1989 (uma foto do set list manuscrito da apresentação presente no encarte deixa claro que algumas músicas interpretadas na ocasião não estão presentes no CD, como, por exemplo, "So. Central Rain" e "Feeling Gravitys Pull", duas das minhas favoritas na discografia do quarteto). Registros de partes da mesma excursão também aparecem no já citado vídeo Tourfilm, lançado em 1990, cujo áudio foi totalmente retirado do mesmo show em Greensboro presente na edição de aniversário citada acima. Com o final da digressão, o R.E.M. voltaria aos estúdios no meio de 1990, para trabalhar no sucessor de Green, o qual viria a ser Out of Time, o álbum que, finalmente, faria o grupo "estourar" nas paradas do mundo inteiro. Mas isto é assunto para um outro texto.

Track List:

1. Pop Song 89
2. Get Up
3. You Are The Everything
4. Stand
5. World Leader Pretend
6. The Wrong Child
7. Orange Crush
8. Turn You Inside-Out
9. Hairshirt
10. I Remember California
11. Untitled