Por Adriano KCarão
Apresentamos, nesta semana e na próxima, a discografia de estúdio de um dos pilares do rock progressivo mundial, o King Crimson. Desenvolvendo inicialmente um estilo claramente progressivo, calcado no uso do mellotron, como uma evolução do que vinha fazendo o The Moody Blues, a banda foi absorvendo desde o início da carreira até os últimos anos uma maior ou menor influência de elementos os mais diversos, como a música erudita, o jazz, o rock pesado e até sonoridades mais dançantes. Dividiremos a discografia do grupo em duas partes: a primeira, abordada por mim, engloba a fase "clássica" da banda, do primeiro álbum até o disco Red (1974), depois do qual a banda entraria em um grande hiato; a segunda, abordada pelo colega Micael Machado, engloba desde o ressurgimento da banda, com o álbum Discipline (1981) até os seus últimos lançamentos. Surgido da união do guitarrista Robert Fripp e do baterista Michael Giles (ambos do Giles, Giles & Fripp) com o multi-instrumentista Ian McDonald (futuro membro-fundador do Foreigner) e o letrista Peter Sinfield, e recebendo ainda o acréscimo do baixista e vocalista Greg Lake (futuro Emerson, Lake & Palmer), o King Crimson apresenta uma discografia que se estende por cinco décadas, dividida em diversas fases e com diversas formações, incluindo algumas bastante inusitadas. Em 5 de julho de 1969, o Rei Escarlate recebeu seu batismo de fogo, tocando no concerto gratuito dos Rolling Stones no Hyde Park, o qual foi dedicado à memória do recém-falecido Brian Jones. Os Stones preparavam o lançamento de seu novo álbum, Let It Bleed, e se Suas Majestades Satânicas ordenavam que se deixasse sangrar, pois que viesse o Reinado Escarlate do King Crimson!
A estreia do King Crimson não apenas ajudou o incipiente rock progressivo a andar com suas próprias pernas, indo além de suas raízes sessentistas, como constituiu um legítimo clássico do estilo, com uma das capas mais conhecidas da história do rock. Ao mesmo tempo, ITCOTCK já apresenta certos elementos peculiares, que destacavam o King Crimson em meio aos gigantes do prog. Entre esses elementos, encontramos um flerte com o também incipiente heavy metal. E isso nos é apresentado já na primeira faixa, fortíssima candidata a melhor música do grupo: “21st Century Schizoid Man”. O andamento carregado, o riff que antevia os momentos mais sombrios de Tony Iommi, a voz atormentada de Greg Lake, o cenário próprio do heavy metal já se podia ver ali em sua plenitude. Nos anos 60, entretanto, o demônio era um “homem de riquezas e bom gosto”, como diziam os Stones, e o metal do King Crimson não era, portanto, preso às amarras tão comuns a esse estilo quando plenamente desenvolvido. Após a segunda estrofe da música, então, notas graves e solenes vão aos poucos acelerando e dando lugar a uma pauleira jazzística, onde as notas blasfemas do sax de McDonald ora disputam, ora entram em acordo, ora fazem as duas coisas com a guitarra endiabrada de Fripp! O retorno ao tema inicial e um desfecho barulhento e excitante encerram essa faixa, que só encontra rival semelhante na magnífica “Facelift”, que o Soft Machine lançaria no ano seguinte. Após essa peça genial, desfilam boas composições, com especial destaque para a linda e comovente “Epitaph”, uma das faixas mais marcantes da carreira do grupo, além do encerramento com a imponente “The Court of the Crimson King”. “I Talk to the Wind” possui uma melodia encantadora e um instrumental que parece se despedir dos esperançosos anos 60, enquanto que “Moonchild” se divide entre um ótimo tema cantado, de atmosfera sombria, e uma sessão mais experimental que parece acrescentar pouco ao conjunto da obra, mas que não mancha em nada esse belíssimo disco!
Apesar do sucesso alcançado com ITCOTKC, o King Crimson sofreu duas fortes baixas, com a saída de Ian McDonald e Michael Giles – este ainda voltaria pra gravar a bateria de In the Wake of Poseidon como músico contratado. Além desses dois, Greg Lake logo abandonaria o barco, não mais tocando baixo, que aqui ficaria a cargo de Peter Giles (também ex-Giles, Giles & Fripp), e sendo substituído nos vocais por Gordon Haskell na faixa “Cadence and Cascade”. A quem queira se aprofundar na carreira do King Crimson e conhecer todos os seus discos, seria recomendável iniciar por este álbum, e não pelo primeiro, com o simples intuito de evitar um sentimento de repetição. Apesar de ter seu valor próprio e de acrescentar novos elementos ao já rico som da banda, nota-se claramente que em In the Wake of Poseidon a banda investe em ao menos três fórmulas do primeiro disco – que deram certo, diga-se de passagem. “Pictures of a City” é a irmã-caçula de “21st Century Schizoid Man”, assim como “Cadence and Cascade” de “I Talk to the Wind” e a faixa-título de “Epitaph”. Presentes no lado A do vinil, são todas inferiores às originais, mas são ainda assim todas proporcionalmente ótimas. Destaco, em especial, “Pictures of a City”, que, apesar de contar com uma performance de Lake que não me agrada – e que nem de longe atinge o brilhantismo do seu vocal na faixa irmã do primeiro álbum –, contém uma energia muito forte, conseguindo às vezes empolgar mais que “21st Century Schizoid Man”, mas sem o mesmo nível de genial loucura desta. O disco apresenta três faixas curtas, denominadas “Peace – a Beginning”, “Peace – a Theme” e “Peace – an End”, as quais situam-se respectivamente no início, no meio (início do lado B do vinil) e no fim. Após a segunda “Peace”, temos a fraquinha “Cat Food”, que tem, apesar de tudo, o mérito de apresentar uma nova “fórmula” musical, que seria melhor trabalhada no disco seguinte, Lizard. Chegamos então à obscura “The Devil’s Triangle”, faixa que eu não colocaria entre os clássicos da banda, mas que jamais deixará o ouvinte impassível. Com farto uso de mellotrons, colagens sonoras – pode-se até ouvir um trecho de “The Court of the Crimson King” próximo ao seu final – e até tomando emprestada a batida da peça “Marte”, de Gustav Holst, essa poderosa faixa torna-se algo único, mais um trunfo para Sua Majestade, o Rei Escarlate!
Com Andy McCulloch assumindo as baquetas e Gordon Haskell e Mel Collins – que participou do disco anterior tocando sax e flauta – tornando-se membros permanentes, o primeiro assumindo também o baixo, além do auxílio de diversos músicos de jazz, a banda lançou mais um ótimo álbum, quase tão bom quanto o primeiro e certamente superior ao seu antecessor. Lizard já abre com uma das melhores criações de Robert Fripp, a tenebrosa “Cirkus”, cuja estrutura básica consiste em lindas estrofes, cantadas com intensidade por Gordon Haskell, e sempre seguidas de um sinistro tema de mellotron, acompanhado de um dedilhado apático no violão. Após entrar em um momento de quase silêncio, a música volta aos poucos, ressurgindo o tema do mellotron, e o dedilhado de Fripp torna-se bastante irrequieto, o que confere um ar ainda mais paranóico e desesperado a essa faixa, que encerra majestosamente com notas solenes de uma corneta. O clima torna-se ensolarado com “Indoor Games”, primeira a aproveitar a fórmula jazzística funkeada de “Cat Food”, com um resultado bem positivo, especialmente no instrumental aparentemente aleatório, mas onde todas as performances se encaixam perfeitamente. “Happy Family” é uma faixa deliciosa, que também segue a fórmula de “Cat Food”, mas de forma mais simples. Além do tema instrumental, que gera um efeito cativante ao combinar timbres díspares de vários instrumentos como piano e sintetizador, destaco nessa música o vocal de Haskell, que, assim como em “Cirkus”, não apresenta maiores virtudes técnicas, mas encaixa-se perfeitamente ao que a música pede, como que tornando-se um instrumento a mais. Após a calma “Lady of the Dancing Water”, temos, entretanto, uma participação especialíssima nos vocais: ninguém menos que Jon Anderson (Yes)! Ele substitui Haskell na primeira parte da belíssima suíte "Lizard". Esta inicia com o belo tema cantado por Jon, ao qual se segue um trecho instrumental de arranjo impecável, com ênfase nos sopros e ótimas intervenções de piano. Esse tema, que mantém o clima dramático da música, encerra-se com um desfecho glorioso. A esse desfecho, emenda-se um novo movimento, que vai aos poucos se definindo, inclusive com Haskell cantando timidamente, até que a parte vocal dá lugar a um trecho instrumental mais arrojado, com a entrada da bateria. Um novo tema dos sopros é então apresentado, irascível, onde destaco novamente as intervenções sapientíssimas do piano! Esse tema ensaia alguns desfechos, até que finalmente some e deixa apenas a guitarra de Fripp chorando baixinho, um choro raivoso, que logo dá lugar a uma nova utilização de colagens sonoras pela banda, encerrando esse lindo disco com um resultado novamente acima da média.
Com Boz Burrell assumindo os vocais e o baixo no lugar de Haskell e Ian Wallace indo para a bateria deixada por McCulloch, o King Crimson lançou esse controverso álbum, amado por alguns, desprezado por muitos. Islands é um disco que não me desce muito bem, e isso se deve em grande parte à voz de Burrell, que não me agrada em um momento sequer do álbum todo. Um outro elemento que pesa contra o disco é a utilização de solos meio “frouxos” de instrumentos diversos em “Formentera Lady” e na – apesar de tudo, agradável – faixa-título, diferentemente do que ocorre nos momentos mais marcantes da banda, nos quais os elementos, à medida que solam, vão construindo a estrutura do conjunto. Isso pode ser ouvido em “Sailor’s Tale”, por exemplo, sendo essa minha faixa preferida do disco, mas ainda assim não podendo figurar entre os clássicos do grupo. “The Letters” e “Ladies of the Road”, especialmente a primeira, não fogem muito do que se espera do King Crimson em termos de estilo, mas também não impressionam. “Prelude: Song of the Gulls” é mais inusitada, por ser muito calma para os padrões crimsonianos e ser a única na carreira da banda tocada unicamente por um conjunto de cordas, mas também não salva o disco. Definitivamente, eu não levaria Islands comigo pra uma ilha deserta.
Esse disco já foi comentado por mim aqui neste blog, então procurarei não ser repetitivo, recomendando a leitura da matéria que o aborda em particular. Com a banda totalmente reformulada, mantendo apenas Fripp das formações anteriores, e contendo agora John Wetton (ex-Family) no baixo e no vocal, David Cross no violino e na viola, Bill Bruford (ex-Yes) na bateria e Jamie Muir na percussão, além do letrista Richard Palmer-James (ex-Supertramp), Larks’ Tongues in Aspic representa para mim o ápice criativo da banda. Abrindo e fechando com as duas partes da “faixa-título”, e contendo entre elas quatro músicas bem distintas entre si, todas ótimas, Larks’ retoma a riqueza de sonoridades e o refinamento nos arranjos de Lizard, mas de uma forma completamente distinta. Embora todas as faixas sejam muito boas, destaco duas das melhores composições do grupo, a saber, “Exiles” e “The Talking Drum”. “Exiles” é como uma segunda “Epitaph”, mas superior à canção do primeiro disco, contando com performances soberbas de Fripp e Cross, além do maravilhoso vocal de Wetton. Já “The Talking Drum” é uma faixa improvável, ao mesmo tempo simples e ousada, investindo forte na combinação/duelo entre violino e guitarra. Seu encerramento, seguido da abertura da última faixa “Larks’ Tongues in Aspic, Part Two”, é tão ou mais impactante do que aqueles momentos mais pesados de “21st Century Schizoid Man” e “Pictures of a City”. O peso, por sinal, é bastante presente nesse disco, mas se tornaria parte ainda mais fundamental no som da banda nos discos seguintes, os quais não mais contariam com a contribuição marcante do percussionista Jamie Muir.
Consistindo principalmente de improvisos gravados em apresentações ao vivo, editados posteriormente em estúdio – e eventualmente recebendo alguns acréscimos como os vocais em “The Mincer” –, esse disco, juntamente com Islands, é um dos meus menos queridos do King Crimson. Apesar disso, não é de forma alguma um disco ruim, e apresenta algumas ótimas músicas, como “The Great Deceiver” e “Lament”, as únicas gravadas totalmente em estúdio, e a minimalista e ao mesmo tempo intrincada “Fracture”. “The Great Deceiver”, que contrasta uma sonoridade rocker bem básica com construções rítmicas bem incomuns, mesmo na parte vocal, pode até figurar entre os clássicos da banda. A guitarra estridente que entra esganiçando na segunda parte da música, após a repetição do seu tema introdutório, é simplesmente de arrepiar! “Lament” já soa pra mim com aquela atmosfera quase grunge que dominaria o disco seguinte, Red. As demais faixas do disco, embora apresentem ótimas performances do quarteto e tragam ainda algumas boas ideias, não impressionam, nem mesmo “The Night Watch”, que teve apenas sua introdução gravada ao vivo. “Starless and Bible Black” é provavelmente a faixa-título mais insossa do King Crimson! “Fracture” é um caso à parte. Consistindo mais em uma composição de Fripp do que em um improviso livre da banda, seu único defeito é a falta de um riff pesado mais marcante, que fizesse jus ao verdadeiro “psychological thriller” gerado pelo dedilhado de Fripp, e que lá pela metade da música atinge um de seus clímax com batidas de Bruford na caixa que tomam o ouvinte de assalto como em raros momentos! Tipo do seriado que podia ter encerrado uma ou duas temporadas antes.
Com a saída de David Cross, o King Crimson lançou talvez o seu álbum mais homogêneo. Red é um disco marcado não apenas pelo peso, mas por uma ênfase na construção de músicas em cima de riffs que vão se repetindo e recebendo variações, à maneira de “Larks’ Tongues in Aspic, Part Two” e “Fracture”. O principal exemplo disso é a faixa-título, também instrumental, que abre o disco com bastante competência, trazendo uma série de melodias marcantes nas guitarras de Fripp. Na sequência, duas ótimas faixas cantadas: a belíssima “Fallen Angel”, que, apesar da sonoridade própria dessa fase do King Crimson, parece guardar certas reminiscências da faixa “Cirkus”, inclusive com toques de corneta; e a arrojada “One More Red Nightmare”, faixa que conta com Ian McDonald no sax e que de certo modo antecipa um pouco da sonoridade do King Crimson em alguns lançamentos futuros. “Providence” conta ainda com David Cross e é mais uma faixa baseada em improvisos gravados ao vivo, o que a torna a menos interessante do disco. Pra encerrar, a suíte “Starless” resume um pouco o histórico sonoro da banda, variando de um tema cantado acompanhado de mellotron a momentos mais exaltados e totalmente instrumentais, com solos de sax e guitarra, e passando também por momentos de improvisação. Com o lançamento de Red, o King Crimson pôs fim às suas atividades – um fim pretensamente definitivo –, na medida em que Fripp se encontrava desiludido com o mercado musical. A banda terminaria, no entanto, retornando, com formação e musicalidade novas, na década de 80, mas isso é assunto pra semana que vem. Deixemos o Rei Escarlate descansar um bocado em seu leito real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário