Por Micael Machado
Há exatos quinze anos, em onze de outubro de 1996, falecia Renato Manfredini Júnior, que o Brasil inteiro conheceu como Renato Russo, o vocalista/letrista/tecladista/baixista da maior banda de rock que este país já viu, a Legião Urbana, e que sempre foi o meu maior ídolo dentro do rock nacional.
Não pretendo neste texto contar a história de Renato, a qual é muito rica em detalhes, apesar de ele ter vivido meros 36 anos. Sua biografia é muito bem contada em livros como “Renato Russo: o Filho da Revolução”, de Carlos Marcelo, o qual recomendo a quem se interessar por conhecer mais sobre o cantor. Este texto é a estória de um fã que acompanhou sua carreira desde um certo dia em 1986, quando ouviu a música “Tempo Perdido” no rádio, e de seu envolvimento com ela.
Àquela época, eu estava formando o meu próprio gosto musical, e rádios como a Atlântida FM e a Alfa FM da cidade de Pelotas, eram as responsáveis por me apresentar ao então novato “BRock”, o rock nacional de grupos como RPM (a primeira banda do estilo a realmente chamar minha atenção), Ultraje a Rigor (cujo álbum Nós Vamos Invadir Sua Praia teve várias músicas executadas pelas rádios), Paralamas do Sucesso, Titãs, Kid Abelha, e Legião Urbana, o grupo do qual Renato indiscutivelmente sempre foi o líder. Se o primeiro disco, Legião Urbana, de 1985, havia passado despercebido por mim, o mesmo não ocorreria com o segundo, Dois, daquele ano de 1986. Depois de “Tempo Perdido”, apareceram tanto no rádio como no Globo de Ouro (programa exibido então pela TV Globo, e que também teve grande influência na minha formação musical) músicas como “Eduardo e Mônica”, “Quase sem Querer”, e, principalmente, “Índios”. Lembro que a Atlântida tinha um programa das seis às sete da noite com as “mais pedidas” pelos ouvintes ao longo do dia, e durante mais de seis meses “Índios” ficou em primeiro lugar. Era só ligar o rádio depois das 6:45h que, se podia ter certeza, a música iria tocar.
Renato em 1986
Só vim a conhecer o disco inteiro uns três anos depois (na época, não existia internet e essa facilidade que temos hoje de conhecer tudo ao mesmo tempo em que surge, ainda mais no interiorzão do Rio Grande do Sul, onde poucas cópias de poucos discos chegavam à única loja que vendia vinis na cidade, ainda mais sendo de uma banda quase desconhecida então), mas até hoje Dois é o meu disco preferido dentro do Rock Nacional. Com aquelas que conheci pelo rádio, pela primeira vez eu encontrava músicas cujas letras eu conseguia compreender e me identificar. Mesmo que vários trechos não fizessem lá muito sentido para um garoto de doze anos, os que eu conseguia compreender me tornaram fã do grupo imediatamente.
Aos poucos, algumas músicas do primeiro disco também começaram a tocar nas rádios, e fiquei conhecendo “Será”, “Geração Coca Cola”, “Ainda é Cedo” e “Por Enquanto”, músicas que caíram muito bem aos meus ouvidos, aumentando o meu fascínio pela Legião, e, principalmente, por Renato. As apresentações do grupo no Globo de Ouro mostravam um cantor que fazia umas danças estranhíssimas no palco (anos depois, descobri que eram copiadas de Morrisey, vocalista dos Smiths, misturado a algo de Ian Curtis, do Joy Division), que mesmo pela TV demonstrava um carisma enorme com seus olhares e expressões, e que marcava assim a minha adolescência de uma maneira que nenhum outro de meus ídolos musicais conseguiria. Quando o Fantástico, talvez o principal programa de TV da época, exibiu o clipe de “Tempo Perdido”, ficou claro que a banda seria grande. Não lembro de outro grupo do BRock a ter vídeos apresentados no programa, que se caracterizava por mostrar clipes de artistas da MPB, ou de grandes nomes da música mundial (lembro até hoje de quando passou o de “Thriller”, de Michael Jackson, em 1982, o qual teve de ser repetido na semana seguinte devido aos pedidos da audiência). Quando, em 1987, surgiu Que País é Este 1978/1987, o terceiro álbum da Legião, o fato se repetiu com o clipe da faixa título, só que, aquela altura, a Legião já era bem maior.
Na sua casa na Ilha do Governador, em 1987
Foto retirada do site www.legiaourbana.com.br
“Faroeste Caboclo” e seus mais de nove minutos foi a música que levou a Legião Urbana para aqueles que ainda não a conheciam. Era a primeira vez que eu escutava uma canção tão longa, e isso que a versão que tocava na Atlântida não tinha os “palavrões”, como os das frases “com o cú na mão”, “olha pra cá filha da puta sem vergonha”, e outros. A rádio fez uma edição nessas partes e a música chegou ao primeiro lugar naquele programa que citei antes, ficando nesse posto por ainda mais tempo do que “Índios”. Lembro até hoje do locutor respondendo às cartas e ligações dos ouvintes (e-mail e torpedos eram coisas de ficção naqueles tempos) sobre o porquê da rádio não tocar a música completa, e eu sem entender nada, pois não conhecia a versão do vinil. A coisa chegou a um ponto tal, que a rádio passou a tocar a música na íntegra, com palavrões e tudo, desafiando a ainda existente censura, com o locutor dizendo que essa decisão tinha sido tomada devido aos insistentes pedidos dos ouvintes. Para a época, essa era uma atitude impressionante!
Veio o fatídico show de Brasília, o qual terminou em tumulto, e a Legião apareceu no jornal nacional. Não lembro de nenhum outro grupo do Brasil à época ter tido tal repercussão, ainda que por um fato negativo. A importância da Legião para a juventude da época já era imensurável, e o Fantástico exibia o clipe de “Que País É Este” (com Renato se arrastando por entre paredes com as cores da bandeira nacional) com grande destaque, além de a emissora exibir um programa especial com a Legião e os Paralamas do Sucesso juntos, o qual, felizmente, foi lançado em CD/DVD recentemente. O clipe de “Eu Sei” retirado dessa apresentação (com Renato enrolado em um cachecol) também passou a ser exibido nos programas de sábado à tarde dedicados à “música jovem” da época.
No especial com os Paralamas
Quando foi lançado As Quatro Estações, em 1989, eu já conhecia a Revista Bizz, já estava no segundo grau, e já tinha meios de comprar o vinil praticamente no dia em que ele chegou à maior loja de discos de Pelotas, a cidade onde eu estudava então. A saída de Renato Rocha já havia sido anunciada pela revista citada, e eu nem desconfiava que a passagem de Renato para o baixo apenas retomava a primeira formação da banda, pois não tinha a mínima ideia de que o músico já havia ocupado este posto, não só na Legião, mas também no Aborto Elétrico (a suposta primeira banda punk do Brasil), a qual, apesar de ter sua história citada no encarte do terceiro disco, era uma completa desconhecida para mim, que ainda não conhecia a versão em vinil do mesmo.
As Quatro Estações foi um dos primeiros discos que comprei. Foi nele que descobri que as rádios quase nunca tocam a melhor música de um disco, assim como a expressão Urbana Legio Omnia Vincit (“A Legião Urbana a tudo vence”), presente nos encartes de quase todos os discos grupo. Se “Há Tempos”, “Pais e Filhos” e “Monte Castelo” tocaram à exaustão tanto no rádio quanto na TV, minhas favoritas sempre foram “Feedback Song for a Dying Friend”, “Eu Era um Lobisomen Juvenil” e “Maurício”. As músicas e as letras do grupo estavam diferentes, as primeiras mais calmas, melódicas e com mais teclados, e as segundas mais focadas nos relacionamentos interpessoais, ou pelo menos foi assim que eu as percebi na época.
Frases como “se você quiser alguém para ser só seu é só não se esquecer de que estarei aqui”, “toda dor vem do desejo de não sentirmos dor” e “às vezes faço planos, às vezes quero ir para algum país distante, voltar a ser feliz” marcaram aquele período da minha vida, e estes e outros versos das letras de Renato passaram a ser usados por mim para assinar as agendas de minhas colegas da época (os adolescentes ainda têm esse costume meio bobo de assinar agendas?), inclusive trechos de músicas dos três primeiros discos, que eu recentemente havia finalmente conhecido, graças aos novos amigos (e amigas) que o segundo grau me proporcionou. Foi por essa época também que Renato se declarou homossexual em uma entrevista para a Bizz, fato que não abalou em nada o seu prestígio e a admiração de seus fãs, o que chega a ser surpreendente em uma sociedade tão machista e preconceituosa quanto a nossa.
Sessão de fotos para As Quatro Estações
Foto retirada do site www.legiaourbana.com.br
V, de 1991, foi precedido por uma longa reportagem na revista Bizz contando seus detalhes. “Uma espécie de Low, de David Bowie, só que com o lado difícil à frente”, como a revista o chamou, não ajudou em nada, pois eu nem sabia quem era Bowie na época, muito menos havia escutado esse disco então. A semelhança apontada no texto entre a capa de V e a de Larks’ Tongues In Aspic, do King Crimson, também passou batida por mim, que também não conhecia nem grupo nem disco. Mas nada daquilo que consegui entender do texto me preparou para o que escutei quando comprei o disco. A abertura com o português arcaico de “Love Song”, os mais de onze minutos de “Metal Contra as Nuvens”, a maravilhosa instrumental “A Ordem dos Templários” e a depressiva e fascinante “A Montanha Mágica” eram coisas de outro mundo para o meu conhecimento musical. Se, como Renato, eu já fosse fã de progressivo à época, ou se conhecesse um pouco mais da carreira de bandas como Joy Division e The Cure, talvez essas músicas não me impressionassem tanto, mas, como o meu conhecimento musical era (e ainda é) muito limitado então, essas canções soaram como uma revolução musical aos meus ouvidos, assim como para muitos dos fãs do grupo, acredito eu, os quais encontraram no lado B do vinil músicas mais “normais”, embora ainda diferentes do estilo que a banda fazia até então.
Acústico MTV, gravado na época do disco V
“O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral” e “O Mundo Anda Tão Complicado” tocaram nas rádios, mas eu preferia “Sereníssima” e “Lage D’Or”. Quando a minha cidade enfrentou uma grande enchente, em 1992, e tivemos de ficar mais de mês afastados de nossa casa, foram versos como “tudo passa, tudo passará” e “a vida continua e se entregar é uma bobagem” que estavam em meu pensamento durante o longo trabalho de limpeza e reorganização do local onde morava com minha família. Naqueles tempos, eu até não conhecia muita coisa em termos de música, mas já tinha certeza de que nenhum outro conseguiria fazer letras que representassem com tanta precisão os meus próprios sentimentos e pensamentos como as que Renato fazia.
Música para Acampamentos, lançado no mesmo ano de 1992, foi o primeiro vinil duplo que comprei (devido ao custo muito maior que um simples), e nele descobri a “mania” de Renato de enxertar músicas alheias em meio aos sucessos da Legião. Seu talento era tamanho que encaixava as letras de músicas dos Beatles, dos Stones, de John Lennon e de muitos outros nas métricas das músicas do seu próprio grupo, fazendo com que parecesse que as mesmas haviam sido escritas para aquelas melodias. Coisa de gênio! Fora que músicas que eu já gostava, como "Baader-Meinhof Blues" e "A Montanha Mágica", estavam ainda melhor nas versões daquele disco ao vivo do que nas que eu conhecia! Não são muitas bandas que conseguem isso!
No lançamento de O Descobrimento do Brasil (1993), eu já morava sozinho em Esteio, na grande Porto Alegre, e já tinha meu trabalho e minha autonomia. Comprei o disco praticamente no lançamento, e, se as rádios preferiram tocar “Perfeição” e “Vamos Fazer um Filme”, eu ouvia “Vinte e Nove”, “A Fonte” e “Os Barcos”, além de mais uma vez me identificar com letras como as de “Do Espírito”, “Love In The Afternoon” e “La Nuova Gioventú”, que retratavam relacionamentos que não haviam dado certo. Foi na turnê desse disco que pude finalmente ver o grupo ao vivo, em um dos momentos que considero mais especiais nesta minha trajetória musical, e sobre o qual já escrevi aqui.
Na turnê de Descobrimento do Brasil
Logo depois Renato lançou os álbuns solo The Stonewall Celebration Concert (1994) e Equilíbrio Distante (1995), somente com covers, e aos quais não dei muito interesse, apesar de ouvir algumas músicas nas rádios e na TV, especialmente “Cathedral Song” e “Strani Amore”, que eu já não gostava nas versões originais, e não conseguiram me atrair para os discos. Hoje gosto bastante do primeiro, com músicas em apenas em inglês, e das quais a versão para “Cherish”, de Madonna, é minha favorita, mas ainda não me acostumei com os pomposos e intencionalmente melosos arranjos das músicas em italiano do segundo, nem mesmo com a excelente versão para “Dolcíssima Maria”, de uma das minhas bandas favoritas do progressivo italiano, a Premiata Forneria Marconi.
A Legião voltou a ter importante significado para mim quando do lançamento de A Tempestade ou O Livro dos Dias, em 1996. Na empresa onde eu trabalhava então alguns colegas (homens e mulheres) eram quase tão apaixonados pelo grupo quanto eu, e “A Via Láctea”, a música de trabalho do disco, era presença constante no rádio que ficava no nosso ambiente de trabalho. Comprei o disco naquela embalagem em forma de livro, que depois foi substituída por uma embalagem comum, e hoje em dia se tornou quase uma raridade. Lembro que gostei apenas da última música, “O Livro dos Dias”, e estranhei bastante o clima depressivo e melancólico do disco, muito diferente dos anteriores, sem saber na época que ele refletia o estado emocional do cantor, já bastante debilitado pela AIDS. Anos depois, uma namorada que tive conseguiu me “ensinar” a ouvir o disco, e, mesmo que ele não esteja entre meus favoritos dentre a discografia da Legião, hoje eu consigo já o ouvir até com algum prazer.
Renato em seu apartamento, dezembro de 1995
Foto retirada do site www.legiaourbana.com.br
Foi na manhã de uma sexta feira, véspera de feriado, que as rádios anunciaram a morte do cantor, ainda de “causas desconhecidas”. A notícia deixou a mim e meus colegas citados completamente abismados, e no princípio não acreditamos ser verdade. Quando o fato se confirmou, por volta do meio dia, o trabalho perdeu o significado. O setor onde eu trabalhava praticamente parou, e pessoas de outras áreas da empresa vinham até ali para comentar o fato, com algumas garotas chegando às lágrimas devido à tristeza do momento. Lembro que um dos sócios da empresa, notoriamente avesso à Legião Urbana, e especialmente a Renato, comentou ironicamente que “finalmente morria a bicha aidética mais antiga do país”, numa atitude totalmente lamentável, ainda mais que a doença do cantor não havia sido anunciada publicamente, ao contrário do que fez Cazuza quando adoeceu. O sujeito só não apanhou (e muito) de todos nós por ser um dos “patrões”, e tivemos de engolir tamanha ofensa sem reclamar muito.
Ao longo da tarde veio a confirmação de que a morte havia sido em decorrência de complicações relacionadas a AIDS (o que surpreendeu a todos nós, que, como disse, não sabíamos da doença, ainda mais em estágio tão avançado), e, à noite, o Jornal Nacional exibiu uma reportagem de onze minutos sobre o fato, em uma atitude que acredito ser inédita em uma rede de televisão do porte de TV Globo, o que só reforça a importância de Renato para a música nacional (assista a esta emocionante matéria, que conta inclusive com uma bela biografia do cantor, aqui e aqui). A revista Bizz citou em uma edição especial anos depois que a apresentadora Lillian Witte Fibe questionou o fato de dedicar metade do jornal a um “simples cantor” nem tão importante assim, tendo sido rebatida pelo também apresentador Willian Bonner recitando metodicamente a letra de “Faroeste Caboclo”, do início ao fim, para a estupefata jornalista. Não sei se este fato é mesmo verdade, mas, se for, é mais uma demonstração do quanto os fãs da Legião idolatravam Renato.
Depois de sua morte, Renato deixou de ser “apenas” um músico para se tornar um mito. A Legião lançou a segunda parte do disco A Tempestade, intitulado Uma Outra Estação (1997), e mais alguns discos ao vivo (incluindo o especial Acústico MTV, de 1999), embora nós (os fãs) ainda estarmos no aguardo da tão comentada caixa de raridades do grupo, que há anos Marcelo Bonfá (ex-baterista) declarou estar pronta, mas que ainda não viu a luz do dia. Sua vida virou especial de TV (Por Toda Minha Vida, de 2007), e discos com o nome de Renato Russo também foram lançados, desde sobras de estúdio (O Último Solo, de 1997) e documentos atemporais como o disco O Trovador Solitário (2008, que traz o áudio de uma fita cassete gravada por Renato em seu quarto, na época em que adotou para si o pseudônimo que dá título ao disco, no período entre o Aborto Elétrico e a Legião Urbana), até picaretagens e montagens de estúdio totalmente desnecessárias (como o decepcionante Duetos, de 2010), além de diversos livros e até mesmo filmes sobre o cantor e sua “tchurma” de Brasília (sendo que a película “Somos Tão Jovens”, que promete retratar a adolescência de Renato, está neste momento em estágio final de produção). Além disso, finalmente o tão falado filme baseado na música “Faroeste Caboclo” foi rodado, encontrando-se também em fase de conclusão.
O garoto Renato Manfredini Júnior
Renato Russo foi apenas uma das várias personas que o tímido e retraído jornalista, professor de inglês, locutor de rádio, escritor, ator de teatro, estudante, poeta, cantor, baixista, guitarrista, tecladista e grande fã de Sid Vicious Renato Manfredini Júnior adotou ao longo de sua passagem pela terra. Mas é aquela cuja lembrança nunca desapareceu da memória de seus inúmeros fãs, muitos deles nascidos após a morte do músico, e que conheceram seu trabalho através dos pais, tios, vizinhos e amigos, ao longo destes quinze anos de sentida ausência daquele que, para mim, foi o maior poeta da língua portuguesa da minha geração. E que falta ele faz!
É tão estranho, os bons morrem jovens...
Urbana Legio Omnia Vincit. Força Sempre!
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