Por Micael Machado
Cansado dos excessos da fama (que envolviam, entre outras coisas, falta de privacidade e abuso de aditivos químicos como o álcool e a cocaína), o "camaleão" David Bowie deixou para trás a Los Angeles onde morava em 1976 e se mudou para a capital alemã, Berlim, levando consigo o amigo Iggy Pop, na época vivendo pela ruas da cidade dos anjos e completamente falido e derrotado após o fim dos Stooges, banda que liderou entre 1967 e 1974, mas que só obteria reconhecimento artístico e comercial muitos anos depois. Antes de chegar à Alemanha, a dupla passaria pela França (mais precisamente, o estúdio Château d'Hérouville, próximo a Paris), onde gravaria as bases do que viria a ser o primeiro álbum solo do "iguana", The Idiot, a ser lançado em 1977, mesmo ano que veria o nascimento do novo disco de Bowie, Low, o qual causaria espanto tanto no público quanto na crítica.
Surpreendendo a todos, o camaleão decidiu não sair em turnê de divulgação de seu "estranho" registro "não comercial" (como Low foi acusado à época), mas embarcou em turnê ao lado de Iggy para promover The Idiot pelos Estados Unidos, atuando como músico de apoio (nos teclados e backing vocals) para que o Iguana brilhasse. Um dos shows desta excursão foi gravado à 21 de março daquele ano no Agora Ballroom em Cleveland, Ohio (durante uma temporada de três shows da turma no local), e lançado primeiro como Sister Midnight em 1999, e, com nova arte gráfica, como Iggy & Ziggy – Sister Midnight - Live At The Agora em 2012, ficando a versão nacional a cargo da gravdora ST2.
Capa original do disco Sister Midnight
Fica difícil não gostar deste disco logo aos primeiros segundos da faixa de abertura (a clássica "Raw Power"). Se o repertório na contracapa já atiça a curiosidade do fã de Iggy (com ou sem os Stooges), a qualidade sonora destas gravações chega a ser impressionante, ainda mais se comparadas com os registros "oficiais" desta turnê (algumas delas retiradas desta mesma temporada no Agora) presentes no álbum TV Eye Live, picaretagem lançada por Iggy em 1978 para se livrar de seu contrato com a gravadora RCA, que não aguentava mais em seu cast aquele maluco que aprontava muitas confusões e não vendia quase nada. Se naquele álbum tudo soa meio confuso, aqui Iggy Pop se apresenta com a voz no auge (muito melhor que nos tempos de Stooges), e amparado por um guitarrista talentosíssimo (Ricky Gardiner, ex-membro do Beggar's Opera, e que recém havia participado das sessões de Low) e uma cozinha segura e entrosada (formada pelos irmãos Tony Sales, baixista, e Hunt Sales, baterista, dupla que anos depois iria ser parte do Tin Machine ao lado do Camaleão). Isso para não citar a participação de Bowie, a qual, longe de soar apenas como uma curiosidade, se mostra essencial ao arranjo das faixas apresentadas.
Apenas três músicas da então nascente carreira solo do Iguana aparecem no track list da apresentação. Se os quase sete minutos da baladona "Turn Blue" (a qual só veria seu registro oficial no álbum seguinte do cantor, Lust For Life) se arrastam a passar, por conta de seu jeitão gospel (reforçado por uma espécie de coral de igreja no início - feito pelos músicos de apoio, e sobre o qual Iggy parece pregar ao Senhor com um ar de deboche na voz), os arranjos de "Funtime" (com um belo solo "espacial" de Bowie) e (principalmente) "Sister Midnight" se apresentam mais próximos à Disco Music, que começava a dominar o mundo da música à época, e, apesar de sua qualidade, acabam soando "estranhas" quando colocadas lado a lado com as composições da antiga banda de Iggy, por causa da imensa diferença de estilos. O mesmo acontece com duas canções mais "contidas" do repertório dos Patetas, "I Need Somebody" (que soa pastosa e lamacenta) e "Dirt", onde a banda cria um belo arranjo (com total destaque para Bowie, que comanda a faixa com seus teclados), mas não consegue ultrapassar a original. O que já não é o caso de "Gimme Danger", outra música "calma" do repertório da antiga banda de Iggy (e que aqui aparece ainda mais lenta que a versão de estúdio), cuja redenção apresentada neste disco consegue soar ainda melhor que sua versão original, em muito graças aos teclados do Camaleão, que dão ares de uma composição dos Doors a uma das mais belas canções da carreira do Iguana.
David Bowie e Iggy Pop juntos, ao vivo, em 1977
As demais músicas originais dos Stooges mantém o seu alto poder de destruição, elevado pelo fato de Gardiner e os irmãos Sales serem músicos muito mais talentosos que os membros dos Patetas, o que, se por um lado tira um pouco da "crueza" das composições, lhes acrescenta possibilidades que o agrupamento de Michigan nunca conseguiria alcançar, reforçadas pelas teclas do Camaleão, que, como disse, não se contentam em ser meras coadjuvantes, e deixam clássicos como "No Fun" (que aparece um pouco mais contida) ou "Raw Power" com ares de um "Velvet Underground com músicos melhores" (agregadas, no caso da segunda, a um magnífico solo de Gardiner, que também se destaca ao encher de efeitos de pedal wah-wah o começo e o solo de "1969"). Músicas como "Search & Destroy" e "TV Eye" (que ganha muito com a presença do teclado de Bowie, e é outra onde Gardiner aparece com destaque) mantém intactas sua fúria e agressividade, sem decepcionar quem espera mais adrenalina e menos melodia das composições originais de uma das bandas precursoras do punk em solo americano. O álbum se encerra com uma versão demolidora de "I Wanna Be Your Dog", também mais lenta que a original, mas nem por isso menos acachapante e destruidora.
Esta mesma trupe ainda voltaria a Berlim para gravar o segundo álbum solo de Iggy (o já citado Lust For Life, também de 1977), quase ao mesmo tempo em que Bowie registrava Heroes, seu segundo álbum feito na capital alemã, e que teria lançamento no mesmo ano de 1977. Após os intensos meses ao lado do Camaleão, o Iguana seguiria sua carreira com as próprias pernas, alcançando sucesso e reconhecimento ao longo dos anos seguintes, enquanto Bowie permaneceria na Alemanha para gravar Stage (duplo ao vivo lançado em 1978) e Lodger, de 1979, último disco de sua trilogia germânica. A dupla trabalharia junta novamente em 1986, no álbum Blah Blah Blah, de Iggy, e manteria a amizade até os dias atuais, infelizmente, sem um novo registro conjunto, o que faz de Iggy & Ziggy – Sister Midnight - Live At The Agora um álbum ainda mais especial.
Contracapa de Iggy & Ziggy – Sister Midnight - Live At The Agora
Set List:
1. Raw Power
2. 1969
3. Turn Blue
4. Sister Midnight
5. I Need Somebody
6. Search & Destroy
7. TV Eye
8. Dirt
9. Funtime
10. Gimme Danger
11. No Fun
12. I Wanna Be Your Dog
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