domingo, 8 de setembro de 2013

Discografias Comentadas: Legião Urbana


Por Micael Machado

Foi no final da década de 1970, na cidade de Brasília, que o adolescente Renato Manfredini Júnior adotou o pseudônimo Renato Russo e montou o grupo Aborto Elétrico, uma das primeiras bandas punk do país. Após uma discussão com o baterista Fê Lemos, Renato deixou o trio e passou a se apresentar sozinho ao violão, sob a alcunha de Trovador Solitário. A vontade de ter novamente uma banda o levou ao baterista Marcelo Bonfá, e à formação da Legião Urbana em 1982.

A primeira formação tinha Eduardo Paraná na guitarra e Paulo Paulista nos teclados, além de Renato no baixo e vocais e Marcelo na bateria, mas durou apenas um show, ocorrido na cidade mineira de Patos de Minas em 5 de setembro de 1982 (Paraná depois adotaria o nome Kadu Lambach e seguiria uma carreira ligada ao blues). Com a saída do guitarrista e de Paulista, a dupla original chamou Íco Ouro Preto (irmão de Dinho, do Capital Inicial) para as seis cordas, mas seu medo de se apresentar em público faria com que sua passagem pela Legião fosse muito breve. Dado Villa-Lobos assumiu então as seis cordas do trio, a princípio de forma provisória, devido à possibilidade de estudar na Europa, mas acabaria ficando de vez na formação da Legião Urbana.

Através do amigo Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, o trio conseguiu um contrato com a gravadora EMI, mas problemas com diversos produtores fizeram com que as sessões de gravação para o que seria o primeiro disco do conjunto, ocorridas no Rio de Janeiro, não tivessem um resultado satisfatório, e o grupo acabou voltando para Brasília. Frustrado e decepcionado, Renato cortou os pulsos em uma mal-explicada tentativa de suicídio, e, impossibilitado de tocar, acabou cedendo espaço para a entrada de Renato Rocha (também conhecido como Billy ou Negrete), que assumiu como baixista pouco antes de novas sessões de gravações, que finalmente foram aprovadas pela gravadora e compuseram a estreia da banda em 1985.

A partir daí, o sucesso do grupo cresceria exponencialmente, fazendo com que ele se tornasse o maior de sua geração, lançando sete discos de estúdio até a morte de Renato Russo em 1996 de complicações decorrentes do vírus da AIDS. Um último disco póstumo foi lançado em 1997, mas o sucesso da banda não diminuiu desde então, inclusive com muita gente que sequer era nascida quando a Legião estava na ativa se tornando fã do conjunto ao longo dos anos. Confira, então, nossa análise do trabalho do grupo nesta Discografia Comentada daquela que é, para mim, a melhor banda de rock já surgida no Brasil!


Legião Urbana [1985]

Após desentendimentos com diversos produtores consagrados, foi o relativamente desconhecido Mayrton Bahia quem conseguiu registrar em fita de modo satisfatório as canções que constariam da estreia do quarteto de Brasília. Lançado no começo de 1985, o disco demorou um pouco para emplacar, mas conseguiu vender cerca de cem mil cópias naquele mesmo ano, graças a sucessos como "Será", "Geração Coca-Cola" e "Ainda É Cedo", que traz influências do pós-punk inglês, assim como "Soldados", considerada a primeira composição de temática homossexual de Renato. A influência punk da época de Aborto Elétrico pode ser percebida em faixas como "Petróleo do Futuro", "Perdidos no Espaço", "Teorema" (que depois seria regravada pelo Ira!) e "Baader-Meinhof Blues", enquanto "A Dança" flerta com a new wave e "O Reggae" tem em seu arranjo o ritmo que lhe dá nome. A melancólica "Por Enquanto" (levada por Russo ao teclado, e que anos depois seria regravada por Cássia Eller) encerra o track list desta boa estreia, mas que ainda estava aquém daquilo que a banda viria a registrar!

Dois [1986] 


Inicialmente, a ideia do grupo era lançar um álbum duplo intitulado "Mitologia e Intuição", mas a gravadora não concordou, e Dois acabou sendo uma espécie de "catado" das faixas registradas para o projeto original. Mesmo assim, é, para mim, o melhor disco de rock nacional de todos os tempos, com sucessos do porte de "Tempo Perdido" (cujos versos finais inspirariam o título de um filme sobre a juventude de Renato Russo lançado em 2013), "Quase Sem Querer", "Índios" e "Eduardo & Mônica", esta, herança dos tempos de Trovador Solitário de Renato, e que no estúdio contou com o vocalista registrando todos os instrumentos. "Daniel na Cova dos Leões" (outra composição considerada de temática homossexual), "Metrópole" e "Fábrica" mostram a influência do punk na sonoridade do grupo, enquanto "Plantas Embaixo do Aquário" (uma das mais estranhas composições da carreira da Legião), "Acrilic On Canvas" e "Andrea Doria" buscam inspiração no pós-punk inglês. "Central do Brasil" é um tema instrumental ao violão, e a acústica "Música Urbana II" é um blues, estilo que o grupo exploraria muito pouco dali em diante. A versão original em K7 conta com uma faixa extra chamada "Química", em versão diferente da que foi lançada no álbum seguinte, e que não apareceu em nenhuma das reedições em CD do disco. Com todos os méritos, Dois é o disco de maior vendagem da carreira do grupo, com aproximadamente um milhão e meio de cópias vendidas, e é o favorito de muitos fãs do conjunto.


Que País É Este 1978/1987 [1987]

Pressionado pela gravadora para lançar rapidamente um novo registro após o sucesso de Dois, e com Renato sofrendo de um bloqueio criativo, a banda decidiu recorrer a composições da época do Aborto Elétrico para compor o repertório de seu terceiro lançamento. A faixa título, "Conexão Amazônica" (que acabou censurada, devido à sua letra com alusões ao tráfico de drogas), "Tédio (Com Um T Bem Grande Pra Você)", "Depois do Começo" (que também apresenta traços de reggae) e "Química" (que já havia sido registrada pelos Paralamas do Sucesso em sua estreia) eram parte do repertório da ex-banda de Russo, enquanto "Eu Sei" (originalmente intitulada "18 e 21") e "Faroeste Caboclo" (maior sucesso do álbum, apesar de contar com mais de nove minutos de duração, e cuja letra inspiraria o péssimo filme de mesmo título lançado em 2013) eram parte do repertório da fase Trovador Solitário do cantor. Apenas duas faixas foram compostas depois do álbum anterior, "Mais do Mesmo" e "Angra dos Reis", bela canção de tons melancólicos escrita por Marcelo Bonfá. A turnê de divulgação culminou com um tumulto ocorrido em show no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, a 18 de junho de 1988, que traria consequências emocionais para todos os membros do grupo, especialmente Renato, e que causaria o encerramento da excursão e um afastamento dos holofotes por parte do grupo que duraria quase dois anos. Um especial exibido pela TV Globo no mesmo ano, com a Legião tocando ao lado dos amigos Paralamas do Sucesso, resultaria no lançamento de Legião Urbana e Paralamas Juntos, em CD e DVD, no ano de 2009.

As Quatro Estações [1989] 


Sem Renato Rocha, que saiu da banda devido a desentendimentos com Marcelo Bonfá durante as sessões de gravação, e com Russo e Dado se revezando no baixo, o quarto lançamento da Legião talvez seja o que mais teve músicas executadas nas rádios, e que são reconhecidas até mesmo por aqueles que não são tão "fanáticos" assim pelo grupo, perfazendo desta forma aquele que talvez seja o álbum mais "pop" da banda. Canções como "Há Tempos", "Pais & Filhos", "Monte Castelo" e "Meninos e Meninas" viraram clássicos do conjunto, e "Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto", "1965 (Duas Tribos)", "Sete Cidades" e "Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar" também tiveram boa repercussão nos meios de comunicação. A pesada "Feedback Song for a Dying Friend" (primeira composição totalmente em inglês na carreira da Legião) é dedicada a Cazuza, que viria a falecer no ano seguinte, e as faixas "Maurício" e "Eu Era um Lobisomem Juvenil" (duas das minhas favoritas na carreira do grupo) completam o track list de um disco que é o preferido de muitos fãs. Dois shows da turnê de divulgação (onde pela primeira vez a Legião contava com músicos de apoio no palco), registrados nos dias 11 e 12 de agosto de 1990 no Estádio Palestra Itália, seriam compilados no disco As Quatro Estações ao Vivo, lançado em 2004.


O grupo na época de As Quatro Estações: Dado, Renato e Bonfá


V [1991]

"Uma espécie de Low, de David Bowie, com o lado difícil à frente". Foi mais ou menos assim que a revista Bizz definiu V em matéria publicada antes de seu lançamento oficial. Como resultado do abatimento causado pelo colapso econômico causado pelo confisco do dinheiro das cadernetas de poupança executado pelo governo Collor (que traria diversos transtornos a muitos brasileiros, inclusive os membros do grupo), e pela descoberta por parte de Renato de que era portador do vírus HIV (o que o levou a um processo de depressão e aumento de sua dependência química e alcoólica), este é o disco mais sombrio do grupo até então, especialmente no lado A do vinil, que conta com "Love Song" (composição com toques medievais e letra em português arcaico escrita pelo trovador Nuno Fernandes Torneol no século XIII), "Metal Contra as Nuvens" (composição que apresenta traços progressivos em seus mais de onze minutos), "A Ordem dos Templários" (instrumental) e "A Montanha Mágica", de melodia depressiva e funesta, e cuja letra aborda os problemas de Renato com a heroína. O lado B possui canções mais "normais", sendo que "O Teatro dos Vampiros", "O Mundo Anda Tão Complicado" e a linda (apesar de meio depressiva) "Vento no Litoral" tiveram boa execução nas rádios. "Sereníssima" e "L'âge D'or" são um pouco mais agitadas, e a canção tradicional do folclore norte-americano "Come Share My Life" (outra instrumental) fecha o track list de outro disco que é o preferido de muita gente por aí. A turnê de divulgação foi interrompida apos poucas apresentações pelo nordeste, devido aos citados problemas de Renato, e o grupo, sem disposição para registrar vídeo-clipes de divulgação, aceitou participar de um especial para a rede de televisão MTV (em um época em que o formato unplugged ainda não estava muito divulgado), que seria lançado em CD e DVD no ano de 1999, sob o título de Acústico MTV. O afastamento dos palcos por parte do grupo também resultou no lançamento da compilação Música para Acampamentos em 1992, disco duplo que reúne faixas gravadas ao vivo, outras retiradas de especiais registrados para rádio e televisão, demos e a semi-inédita "A Canção do Senhor da Guerra", que aqui tem versão diferente da que apareceu no especial "A Era dos Halley", exibido pela Rede Globo em 1985.

O Descobrimento do Brasil [1993] 


Quase dois anos depois de V, a Legião lançava seu sexto registro, em um clima mais ameno do que o anterior, e contando com quatorze faixas, o maior número presente em um álbum do grupo até então. "Perfeição" (que seria o último clipe lançado pelo conjunto), "Os Anjos" e "Vamos Fazer Um Filme" tiveram boa execução nas rádios, sendo que a faixa título, "Vinte e Nove", "Os Barcos", "Um Dia Perfeito" e "Só Por Hoje" ganharam reconhecimento por parte dos fãs. "A Fonte" e "La Nuova Gioventú" são um pouco mais pesadas, e "Do Espírito" resgata um pouco as origens punk da Legião. "O Passeio Da Boa Vista" é um tema instrumental com violão e bandolim, e, assim como "Love In The Afternoon", é mais calma e muito bela, do mesmo modo que "Giz", que Renato declarou ser a canção da qual mais se orgulhava, em show que seria lançado em 2001 no álbum Como É que Se Diz Eu Te Amo, registrado no Rio de Janeiro nos dias 8 e 9 de outubro de 1994. Outra apresentação da turnê, ocorrida a 28 de maio do mesmo ano na cidade de Porto Alegre, foi presenciada por este que lhes escreve, em um show inesquecível e que, infelizmente, seria a única vez que eu presenciaria a Legião sobre um palco, visto esta ter sido a última excursão do conjunto, devido ao agravamento da doença de Renato, embora, publicamente, nada sobre o assunto fosse divulgado. 


A Tempestade ou O Livro dos Dias [1996]

Registrado em circunstâncias adversas entre janeiro e junho de 1996 (muitas faixas saíram com a voz guia na mixagem final, pois Renato não conseguiu completar as gravações das vozes finais), e lançado menos de um mês antes do falecimento de Renato, o sétimo disco de estúdio da Legião talvez seja o de mais difícil audição, devido ao clima depressivo e melancólico que permeia letras e composições. Se "Natália", que abre os trabalhos, e "Dezesseis", que teve boa execução nas rádios, são bastante agitadas, as demais treze faixas (superando em uma o número registrado no álbum anterior) possuem um espírito mais intimista, como atestam "L'Avventura", "A Via Láctea" (faixas que também tiveram boa execução nos meios de comunicação), "Longe do Meu Lado", "Música Ambiente", "Mil Pedaços", "Quando Você Voltar" e "Esperando por Mim", uma das letras mais emocionantes já escritas por Renato. "Soul Parsifal" é uma parceria do vocalista com a cantora Marisa Monte, e "1º de Julho" já havia aparecido no terceiro registro da cantora Cássia Eller, que leva seu nome. "Música de Trabalho" tem uma interessante variação entre uma parte mais agitada e outra mais calma, representando o período de trabalho e de descanso do narrador da composição, e as mais fracas "Aloha" e "Leila" completam o track list, que se encerra com "O Livro dos Dias", minha faixa favorita do disco. Um álbum que poucos citam quando lembram da banda, mas que, mesmo com seu clima pesado e "para baixo", merecia um reconhecimento maior por parte dos fãs.

Uma Outra Estação [1997] 


Assim como ocorreu com Dois, a gravadora também não aceitou lançar o álbum anterior em versão dupla. Desta forma, após a morte de Renato, Marcelo e Dado reuniram as faixas que sobraram de A Tempestade ou O Livro dos Dias (que, em sua maioria, possuem um clima mais "para cima" do que aquele), mais outras que estavam guardadas há tempos (como "Dado Viciado" e "Marcianos Invadem a Terra", sobras do projeto abortado em 1986) e lançaram o último disco oficial de estúdio da Legião Urbana (pelo menos até aqui), novamente contando com quinze músicas. A faixa de abertura, "Riding Song", conta com a participação do ex-baixista do grupo, Renato Rocha, e tem "letra" composta por uma entrevista do grupo da época de Dois, o que reforça a ligação entre os álbuns, além de alguns poucos versos cantados por Bonfá e Dado. "Mariane" era parte do repertório de Renato na fase Trovador Solitário, e "A Tempestade" retoma as influências de pós-punk que apareciam com força nos dois primeiros discos. "As Flores do Mal" (que tocou bastante nas rádios), a faixa título, "Comédia Romântica" e "Antes das Seis" talvez sejam as que mais lembram o álbum anterior, embora não tão melancólicas, o que não é o caso de "Clarisse", canção acústica de quase dez minutos de letra e clima depressivos e suicidas. Embora sua letra conste do encarte, "Sagrado Coração" acabou sendo lançada de forma instrumental devido a Renato não ter tido tempo de gravar a voz para esta composição, o que não é o caso de "Schubert Ländler" e "High Noon (Do Not Forsake Me)", intencionalmente instrumentais. "La Maison Dieu" é um blues lento, com letra criticando a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, e o álbum se encerra com a faixa "Travessia do Eixão", composição do grupo brasiliense Liga Tripa, e que conta com a presença de Bi Ribeiro, dos Paralamas, no baixo acústico. Uma Outra Estação tem audição mais fácil que o álbum anterior, e encerra de forma digna a trajetória desta inigualável banda!

Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Russo

Em 1998, foi lançada a coletânea Mais do Mesmo, com faixas retiradas dos oito discos de estúdio do grupo, que foi muito bem aceita pelos fãs, e em 2011 um lançamento da série Perfil foi dedicado ao grupo, com um repertório parecido com a coletânea anterior.  Entre 1994 e 1995, Renato Russo lançou dois álbuns solo, um totalmente em inglês (The Stonewall Celebration Concert), e outro em italiano (Equilíbrio Distante), sendo que, depois de sua morte, ainda seriam lançados O Último Solo (1997), com sobras dos dois discos anteriores, Presente (2003), que reúne participações do cantor junto a outros músicos e em álbuns tributo a artistas como Cazuza e Vinícius de Moraes, O Trovador Solitário (2008), com áudio retirado de uma fita cassete gravada no quarto de Renato em sua época pós-Aborto Elétrico, e o dispensável Duetos (2010), com diversas faixas montadas em estúdio unindo a voz do cantor a de artistas com quem nunca  se encontrou. Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos seguiram carreiras solo esporádicas, com lançamentos que tiveram repercussão menor que a merecida, e dificilmente voltaram a tocar juntos.

O legado da Legião continua vivo, seja em especiais registrados para a TV (como o tocante Por Toda Minha Vida, exibido pela Rede Globo), seja em tributos como o organizado pelo canal Multishow (Renato Russo - Uma Celebração, de 2006, lançado em CD e DVD), o ocorrido no Rock In Rio de 2011 (com participação da Orquestra Sinfônica Brasileira, também lançado em CD e DVD), o contestado tributo organizado pela MTV reunindo Marcelo Bonfá e Dado Villa Lobos a músicos convidados e ao ator Wagner Moura, que realizou o sonho de qualquer fã e assumiu os vocais da banda em duas noites consecutivas, e o mais recente tributo sinfônico ocorrido em 2013 em Brasília, organizado pelo filho de Renato, Giuliano Manfredini, e que contou com a participação de um holograma do falecido cantor elaborado especialmente para este show. Como disse no começo do texto, o séquito de fãs da banda não parou de crescer ao longo destes quase dezessete anos de sentida ausência de Renato Russo, provando que, mesmo não sendo os instrumentistas mais técnicos e virtuosos de sua geração, suas músicas possuem capacidade para agradar muitas gerações, sejam elas de que década forem!


Urbana Legio Omnia Vincit!

Força Sempre!

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