Por Micael Machado
O tecladista holandês Rick van der Linden (nascido a 05 de agosto de 1946) começou a estudar piano ainda na infância, e, em 1966, juntou-se ao The Incrowd, que se tornaria o Ekseption, grupo com o qual alcançaria o sucesso, e de quem seria o principal compositor. Em 1973, com ciúmes das atenções dedicadas pela mídia ao seu tecladista (e também dos royalties a mais que ele ganhava por compor as músicas), os outros membros da banda pediram que ele saísse, deixando o prodígio das teclas livre para montar um grupo que satisfizesse plenamente suas intenções musicais.
A princípio com o baterista Peter de Leeuwe como parceiro, Rick formou o Ace, mas rapidamente julgou que Peter não estava no nível que ele desejava, e o substituiu por Pierre van der Linden, primo do tecladista, e recém saído do Focus, outro gigante do progressivo holandês. Com a chegada de Jaap van Eik para o baixo, Rick realizou o seu desejo de ter um grupo nos moldes do Nice (banda que revelaria o tecladista Keith Emerson), mas, após assinar um contrato com a gravadora Philips, descobriu que outro conjunto tinha os direitos do nome Ace. Rebatizado então como Trace, o grupo partiu para as gravações de seu primeiro álbum, um dos pilares do progressivo holandês em todos os tempos!
Confira agora a curta, porém qualificada, trajetória do Trace!
Trace [1974]
Precedida por um single com as canções "Progress" (que tem partes que lembram bastante o Focus, especialmente pelo uso do Hammond por parte de Rick) e a viajante "Tabu" (uma adaptação para a composição de Dizzy Gillespie, e onde todos os músicos se destacam, com os teclados em maior evidência), a estreia do Trace abre com uma obra em três atos chamada "Galliarde" (composta de um misto de um arranjo para uma peça de J.S. Bach e para uma tradicional dança polonesa), cuja primeira parte tem um começo muito animado, seguido de um tema com efeitos de teclados muito semelhantes aos que Keith Emerson costumava utilizar no ELP, impressão reforçada pelo arranjo da excelente "cozinha", culminando em um final mais calmo antes do início da segunda parte (intitulada "Gare le Corbeau"), apenas com baixo e bateria executando uma melodia de orientação jazzística, para a canção se concluir com a retomada de "Galliarde", que ressurge do ponto calmo, passando pelo tema que lembra o ELP e voltando então ao início de tudo. Outra faixa baseada em uma peça clássica (desta vez de Edvard Grieg) é "The Death of Ace", uma canção mais lenta, apresentando até um certo tom melancólico, com total destaque para os teclados de Rick, mas também dando o devido brilho a van Eik e a Pierre, que executa aqui um trabalho soberbo de bateria, como também acontece em "The Lost Past", seu "momento solo" no álbum, que vem intercalado entre as duas partes da melancólica "A Memory", comandada pelos teclados. "Once" apresenta novamente um andamento jazzístico em sua parte intermediária, com algumas vocalizações "estranhas" feitas pelo tecladista, e até citação à clássica "Hall of the Mountain King", deixando clara a influência deste estilo sobre o principal compositor do Trace. A longa "Progression" (mais de doze minutos) é outra que demonstra o quanto Rick van der Linden foi influenciado pelos compositores clássicos, além de o tecladista usar e abusar de seu arsenal de instrumentos, como também ocorre em "Final Trace", que fecha o disco original com um tom quase de hino sacro, em contraste com a divertida "The Escape of the Piper", onde o piano é o destaque, e que inclui algumas linhas executadas na gaita de foles. A edição em CD ainda acresceu as duas faixas saídas do single de estreia, não incluídas originalmente no álbum. Apesar de alguns efeitos de teclados soarem bastante datados hoje em dia, este disco ainda permanece como um marco dentro do rock progressivo, apresentando um tecladista no mesmo nível dos grandes ídolos do instrumento no estilo, e uma cozinha azeitada e eficiente. Pouco depois de uma excursão pela Inglaterra, Pierre, cansado da rotina de turnês e gravações que enfrentava desde sua época com o Focus, decide deixar o Trace, que foi buscar na própria Grã-Bretanha o substituto para seu baterista!
Jaap van Eik , Pierre van der Linden e Rick van der Linden
Birds [1975]
Após testar quinze bateristas, Ian Mosley (ex-Wolf) foi o escolhido para o posto, e o Trace gravou um álbum menos "progressivo" que o primeiro, onde os teclados e sintetizadores adotam timbres mais "modernos" para a época, fugindo um pouco da sonoridade presente no primeiro registro, como podemos conferir em "Snuff", um tema agitado, que lembra a trilha dos filmes do gênero blaxploitation embora tenha uma parte mais "clássica" no meio, com destaque para o trabalho de Jaap e Mosley. Duas adaptações para obras de J.S. Bach aparecem no track list, sendo elas a bela "Opus 1065" (do "Concerto for Four Hands"), que conta em seus quase oito minutos com a participação especial do violinista Darryl Way (então membro do Curved Air, e que executa um interessante solo ao instrumento) e "Bourrée", onde não é interpretado o mesmo trecho que estamos acostumados a ouvir com o Jethro Tull, mas sim um outro tema mais rápido (onde o grito de um macaco é interpretado, segundo o encarte, pelo gerente de turnê do grupo, Coen Hoedeman). "Janny (In A Mist)" é um curto tema escrito em 1928 pelo músico de jazz Bix Beiderbecke, onde Rick toca solo ao piano, instrumento que também domina "Penny", com um arranjo jazzístico em sua melodia. "Trixie-Dixie" é uma curta vinheta quase sem sentido, uma simples brincadeira de estúdio que encerrava um dos lados da versão original em vinil. A suíte "King Bird" é dividida em onze partes, e, com quase vinte e dois minutos, ocupava todo o outro lado do vinil (encontrei versões com a faixa por vezes no lado A, em outras no lado B, embora o encarte do CD cite que ela compõe o lado B), com o enredo do "conto" imaginado por Rick representado em uma divertida história em quadrinhos no encarte original (o qual perdeu muito do atrativo visual quando passado para as reduzidas dimensões do disco digital), apresentando muitas variações ao longo de sua duração, e podendo ser considerada a única canção tipicamente "prog" do disco (talvez ao lado de "Opus 1065"). Curiosamente, é a única faixa dos dois discos a apresentar trechos de guitarra e letra nos vocais de sua melodia, ficando o instrumento e a voz a cargo de Jaap van Eik. A versão em CD inclui duas músicas bônus presentes apenas em um single lançado antes do álbum, sendo elas uma nova versão para "Tabu" e uma "short edition" de "Birds", com pouco mais de três minutos e meio. Apesar de bastante recomendável, não é um disco do mesmo nível do primeiro, e o baixo número de unidades vendidas à época repercutiu esta realidade. Com isto, a banda ficou sem a possibilidade de realizar uma turnê de divulgação (apesar de alguns poucos shows realizados logo após o disco ser colocado à venda), o que ocasionou a saída de Jaap van Eik e Ian Mosley, indo a dupla primeiro para o Chain of Fools, com o baixista depois unindo-se ao Vitesse, e o baterista indo tocar com o Footswitch, depois com o guitarrista Steve Hackett (ex-Genesis), e, futuramente, com o Marillion, onde permanece até hoje!
Rick van der Linden, Jaap van Eik e Ian Mosley
The White Ladies [1976]
Sem a "cozinha" que lhe acompanhava até ali, Rick assumiu de vez o papel de "dono" da banda (tanto que o disco é creditado a Rick van der Linden and Trace), e resoveu investir em uma sonoridade ainda mais sinfônica, e mais próxima à da música clássica. Com a presença dos ex-membros do Ekseption, Cor Dekker (baixo) e Peter de Leeuwe (bateria e guitarras, ele que havia sido o baterista original do Trace), e a presença de diversos outros músicos, como Dick Remelink (também ex-Ekseption, sax e flauta), Hetty Smit (vocais) e até um segundo tecladista (Hans Jacobse), a nova formação gravou um álbum bastante diferente dos anteriores, para contar, através de dezenove faixas (onde boa parte são pequenas vinhetas com menos de um minuto, e a maior não chega a quatro minutos), uma lenda local sobre a esposa de um fazendeiro "raptada" pelos espíritos das "white ladies" do local. Com a presença de uma orquestra e de um narrador (papel de Harry Schäfer, amigo de Rick e autor das letras) em algumas faixas, os dois lados do vinil original se desenvolvem no formato de suíte, como se fossem uma única composição. Sendo assim, é bastante difícil apontar destaques, mas me sinto compelido a citar "Dance of the White Ladies" (que poderia passar por uma composição da carreira solo do também tecladista Rick Wakeman, se não fosse a presença do saxofone), as duas adaptações para trechos de obras de Ludwig van Beethoven ("Pathétique" e "The Rescue"), "Back Home" (onde o saxofone retoma a sonoridade jazzística presente em algumas músicas dos primeiros discos), a agitada "Witches' Dance" e a calma "Meditation (for René)" (outra composição que lembra bastante o Focus, assim como "Doubts") para aqueles que quiserem "descobrir" o álbum, o qual, reitero, só será compreendido em sua totalidade quando escutado na íntegra. Para mim, este é o menos interessante dos três álbuns da banda, mas, mesmo assim, apresenta muitas qualidades.
Dick Remelink, Peter de Leeuwe, Rick van der Linden, Hans Jacobse e Cor Dekker
As parcas vendas do terceiro LP e a ausência de uma turnê promocional fizeram com que Rick desistisse de vez do Trace, organizando então uma volta do Ekseption, visto que alguns ex-membros do grupo já estavam ao seu lado. Em paralelo ao trabalho com este grupo, o tecladista manteve uma longa carreira solo ao longo dos anos, além de escrever algumas trilhas sonoras para filmes europeus, participar como convidado de diversos trabalhos e dos projetos Cum Laude e Mistral. O talentoso músico viria a sofrer um AVC em 2005, vindo a falecer a 22 de janeiro de 2006 em seu país natal, deixando para nós um enorme legado musical e uma obra que comprova que ele foi um dos maiores gênios do teclado do século XX, obra esta do qual o Trace foi uma parte importantíssima!
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