Imagine um sujeito que, antes de chegar à adolescência, já desenvolveu um talento natural para a música, tanto ao piano quanto ao baixo e ao violão. Junto ao irmão e à namorada, ele cria um dos melhores, mais importantes e influentes grupos musicais que o Brasil já conheceu, seja em que estilo de música for. Ele se casa com a namorada, e a banda faz um enorme sucesso, mas as drogas, as brigas e a fama fazem o casamento terminar e ela abandonar o grupo. Arrasado pela separação, também ele sai em carreira solo, gravando logo de cara um dos melhores, mais importantes e influentes discos do rock nacional. Decide então montar um novo grupo, que abandona depois de dois álbuns (não lançados à época), e que se transforma em um dos melhores, mais importantes e influentes grupos de hard rock cantado em português do país. Após outro registro solo, e cheio de problemas de saúde, é internado em um hospital, de onde tenta “ir embora” pulando pela janela do terceiro andar. O tombo não acaba com sua vida, mas o deixa em coma por um bom tempo, com sequelas que durarão o resto da vida, além de por pouco não o transformar em um vegetal. Com muita fisioterapia e apoio da nova companheira, ele vai se recuperando, grava um novo registro musical (que reflete com exatidão o estado de sua saúde à época), mais outro disco muito tempo depois, e embarca em um retorno do seu grupo original ao lado do irmão (a ex-namorada e esposa não quis participar), sendo aclamado por plateias da Europa e da América do Norte. Exausto pela rotina de viagens, e ainda não totalmente recuperado, abandona mais uma vez o grupo para se dedicar à pintura, mas decide mais uma vez rodar o Brasil com um espetáculo onde interpreta, sem a companhia de uma banda, canções de toda a sua carreira, músicas escritas por outras pessoas, mas que sempre gostou de ouvir, e outras inéditas que compôs ao longo dos últimos anos.
Este é um breve resumo da história de Arnaldo Dias Baptista, verdadeira lenda viva do rock nacional que veio a Porto Alegre com o seu “Sarau o Benedito?” neste domingo, 21 de outubro. Tocando no agradabilíssimo Teatro da UFRGS, o músico levou um grande público ao seu show (os 1500 lugares do local estavam praticamente tomados), não apenas pela beleza de suas composições, mas pelo privilégio de estar tão próximo a um dos maiores músicos que este país já produziu.
Mapa do palco, desenhado pelo próprio Arnaldo
Com vinte minutos de atraso em relação ao horário marcado, Arnaldo entrou no palco para, sozinho ao piano, abrir o show com "Cê Tá Pensando que Eu Sou Lóki?", do disco Lóki?, de 1974 (sua estreia solo). E sozinho ao piano ele continuou durante todo o show, como já havia sido amplamente divulgado que seria, e em uma situação que não é nada nova para ele (consta que Arnaldo já fazia isso durante a época progressiva dos Mutantes, quando não fazia mais parte do grupo - para quem não sabe, aquele do irmão e da namorada -, mas subia ao palco vestido de cowboy para dar uma "palhinha" no meio dos shows de seu irmão e dos colegas dele).
O fato de estar acompanhado apenas de seu instrumento revela a genialidade e as deficiências do artista Arnaldo Baptista. Genialidade pois, mesmo com todas as sequelas que ainda lhe restam de tudo o que viveu e sofreu, ainda consegue emocionar a plateia (que muitas vezes se dirigia a ele berrando "Gênio" com todo o pulmão) com seu talento ao piano, por vezes executando melodias bastante complicadas (como trechos de compositores clássicos), em outras sequências de canções infantis. Já as deficiências aparecem quando, por vezes, Arnaldo parece esquecer qual a próxima nota a tocar, segurando a melodia com uma mão enquanto a outra permanece suspensa no ar como que tentando adivinhar em que tecla deve cair. Mas isso acontece raras vezes, e é mais uma observação de um chato que parece apenas querer achar algo para criticar do que um problema real para quem assistia ao show.
Arnaldo Baptista
Sem se prender a estilos, Arnaldo intercalou rocks ("Blowin' In The Wind", de Bob Dylan, "Rocket Man", de Elton John, "Yesterday", dos Beatles, "Honky Tonk Women", dos Rolling Stones), gospels americanos (“Down by the Riverside”), música infantil ("Gatinho Cetim"), o tema do filme “A Pantera Cor-de-Rosa”, boleros ("Perfidia"), clássicos da dor de cotovelo ("A Casinha Pequenina", de Sílvio Caldas, de quem seu antigo grupo gravou "Chão de Estrelas") e da música regional brasileira (“Lampião de Gás”, gravada originalmente em 1958, por Inezita Barroso), músicas do cancioneiro francês, britânico ("My Bonnie"), e italiano ("Santa Lucia"), e apenas duas canções de sua época com o Mutantes ("Balada do Louco" e "Posso Perder Minha Mulher, Minha Mãe, Desde que Eu Tenha o Rock and Roll", ambas de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, de 1972).
De sua carreira solo, Arnaldo também escolheu poucas canções, com ênfase no citado Lóki? ("Uma Pessoa Só", "Não Estou nem Aí" e um trecho de "Será que Eu Vou Virar Bolor?" com letra alterada) e em Elo Perdido (de 1988, mas gravado em 1977 ao lado da Patrulha do Espaço, o tal "novo grupo que depois abandonou", e do qual tocou "Sunshine", "Trem" e "Sentado ao lado da Estrada"). Ainda houve espaço para "Jesus Volte Até a Terra" (versão em português para a sua "Jesus Come Back To Earth", e que foi lançada em Disco Voador, de 1987, gravado enquanto Arnaldo se recuperava de seu "acidente"), "Sanguinho Novo" (outra versão em português para uma música originalmente cantada em inglês, desta vez "Young Blood", de seu segundo disco, Singin' Alone, de 1982, assim como a interpretação original de "Jesus..."), e pelo menos duas de Let It Bed, de 2004 ("Woody Woodpecker-Everybody Thinks I'm Crazy" e "Nobody Knows"), além das inéditas "I Don't Care" e “Walking in the Sky” (que deverão estar em seu próximo disco, já batizado de Esphera), tudo isso acompanhado por projeções de suas obras no enorme telão localizado atrás do musico, criando uma apresentação mutante (não resisti ao trocadilho) a cada música interpretada.
Uma das projeções do telão
Apesar de ter um repertório e partituras apoiados em seu piano, a escolha das músicas parecia decidida por Arnaldo ali, na hora, de acordo com sua vontade. As curtas canções (muitas com menos de dois minutos, algumas não chegando sequer a sessenta segundos), iam se sucedendo com breves intervalos (nos quais o músico agradecia à plateia de um jeito tímido e envergonhado, chegando a dizer que "não merecia tanto", quando na verdade merece muito mais), o que fez com que, seguramente, perto de quarenta músicas (ou trechos) tenham sido interpretados nos sessenta minutos de espetáculo, o que tornou apurar um set list exato uma tarefa quase impossível.
Após uma senhora da produção entrar no palco e falar qualquer coisa ao pé do ouvido de Arnaldo, tudo se encerrou com "Corta Jaca" (presente em Singin' Alone e Elo Perdido), mas o pessoal não arredou pé do local até o músico voltar, interpretando novamente "Cê Tá Pensando que Eu Sou Lóki?", para então deixar o palco de vez, de certa forma frustrando quem queria mais um pouco de sua genialidade.
A bela iluminação do palco de Arnaldo baptista
Pode não ter sido tecnicamente perfeito (e não foi), mas foi uma celebração a um dos maiores artistas que este país já viu surgir, e que, miraculosamente, para nossa sorte ainda é capaz de atos belos e emocionantes como este show. Neste sentido, como qualquer um que esteve presente há de concordar, foi maravilhoso!
"Eu não tô nem aí prá morte, eu quero mais é decolar toda manhã..."
Nota: se por acaso você tiver o set list apresentado, deixe para nós nos comentários! Agradecemos!
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