domingo, 25 de agosto de 2024

Resenha de Livro: Surrender: 40 Músicas, Uma História [2022]

Por Micael Machado

O livro Surrender: 40 Músicas, Uma História (no original: "Surrender: 40 Songs, One Story") não é a história do U2. Também não é a história de Bono, o vocalista da banda. É a autobiografia de Paul David Hewson, um filho, irmão, marido, pai, amigo fiel de seus amigos, religioso, ativista (político e ambiental, dentre outros interesses), "atualista" (ele explica o termo em um dos capítulos da obra) e um artista que (aparentemente, apenas de vez em quando) "incorpora" a persona de cantor em uma banda de rock (cantor este que já foi Bono Vox, depois virou Bono, The Fly, MacPhisto, até voltar a ser Bono outra vez). É claro que a história da banda permeia e perpassa as 640 páginas do livro (lançado no Brasil pela editora Intrínseca, com excelente tradução de Rogério W. Galindo), divididas em 40 capítulos (cada um levando o nome de uma música da banda, as quais não são as mesmas presentes no disco Songs Of Surrender, lançado como "acompanhamento" ao livro) supostamente escritos pelo próprio Paul, mas o U2 está longe de ser o principal foco da narrativa.

A perda precoce da mãe (quando Paul tinha apenas 14 anos de idade), o difícil relacionamento com o pai (cheio de altos e baixos) e com o irmão mais velho (que, pelo texto, parece ser meio ausente na vida do rapaz), a amizade com outros garotos de Cedarwood Road, a rua de Dublin onde morou pela infância, adolescência e começo da vida adulta, o encontro e a fulminante paixão (descoberta ainda na adolescência) com Alison Stewart, que viria a se tornar sua esposa e mãe de seus quatro filhos, os primeiros encontros (ainda na escola) e os ensaios iniciais com aqueles que viriam a ser os outros membros do U2, e as inseguranças de um Paul ainda adolescente permeiam as primeiras páginas do livro, que segue em ordem cronológica, focando hora na música, hora na vida pessoal, hora em pensamentos e nas dúvidas (pessoais, religiosas, filosóficas) do autor, narrando a trajetória do homem Paul em paralelo com a história da banda da qual ele faz parte.

É o sucesso e a visibilidade que o U2 alcança que permitem que Paul participe, como Bono, do Live Aid, em 1985. A partir daí, o lado ativista do cantor se intensifica, e, se antes ele e a esposa se preocupavam mais com questões locais da Irlanda (o antigo conflito religioso entre católicos e protestantes que separa os irlandeses é tratado em vários pontos do livro), este evento faz com que o casal passe a se preocupar mais com as mazelas da África e a lutar para melhorar a situação dos habitantes daquele continente (seja em questões financeiras, quanto em questões de saúde, especialmente na luta pelo tratamento das pessoas com Aids), inclusive com várias visitas a diferentes países africanos, as quais são narradas por Hewson de uma forma que deixa explícita as dificuldades dos habitantes locais e daqueles que tentam lhes ajudar, sem nenhuma "passação de pano" para a situação caótica de alguns países do continente, tanto em termos econômicos, quanto em termos sociais. Os problemas da América Central também preocupam ao casal, com Paul compondo "Mothers of the Disappeared" depois de conhecer as mães de El Salvador que haviam perdido seus filhos durante a guerra civil no país, e que, como o autor escreve, "não apenas sofreram a dor de perder seus entes queridos, como foram submetidas ao insulto adicional de não conseguirem recuperar seus corpos".

Algumas páginas de Surrender: 40 Músicas, Uma História

É este lado ativista que traz para a narrativa a participação de importantes líderes mundiais, como o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, a ex-chanceler alemã Angela Merkel, o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbatchev, o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, os ex-presidentes dos Estados Unidos Bill Clinton e Barack Obama, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, o também músico Bob Geldof, "figurões" como Steve Jobs e Bill Gates e até o Papa João Paulo II. A participação de Paul em reuniões com todas estas pessoas (em épocas diferentes) para tentar perdoar a dívida externa dos países africanos, para tentar conseguir condições melhores de tratamento da epidemia de AIDS ou para construir escolas e hospitais no mesmo continente, junto a entidades como a RED ou a ONE (ou por outras causas importantes para o autor) ocupa boa parte das páginas do livro, e os encontros que o ativista Paul tem com estas pessoas e com outras menos famosas, mas não menos importantes ou interessantes, levam a relatos por vezes engraçados, em outros momentos tensos, mas, em sua maioria, comoventes e reveladores sobre a difícil situação das pessoas em um continente ao qual seria muito fácil para um milionário como ele simplesmente fingir ignorar a existência, mas para quem Hewson se dedica de corpo e alma, muitas vezes em detrimento do tempo que dedica a seu casamento e à sua banda. Pessoalmente, confesso que achei muito extensa a quantidade de páginas que abordam este lado "ativista" do autor, mas o texto deixa muito clara a importância desta faceta na vida de Paul, e o quanto ele se dedica de corpo e alma às questões que abraça!

Já o lado artista (e o sucesso do U2) permite o encontro do autor com muitas figuras lendárias do mundo da música. Se algumas delas não chegam a ser surpresa, por já terem gravado ao lado do U2 ou de Bono (como os produtores Brian Eno, Daniel Lanois, Steve Lillywhite e Flood, ou os músicos Bob Dylan, B.B. King, Johnny Cash, Luciano Pavarotti ou Frank Sinatra), outras surgiram de forma, para mim, bastante inesperada, como é o caso do cantor Michael Hutchence (do INXS), do produtor Quincy Jones, da cantora e poetisa Patti Smith e dos músicos Prince e Paul McCartney. Assim como ocorre com os líderes mundiais com quem o ativista Hewson se reúne, os encontros com estas personalidades do mundo do show business (e com outras, como as supermodelos Naomi Campbell, que chegou a ser noiva do baixista Adam Clayton, e Helena Christensen, ex-namorada de Hutchence) também rendem momentos por vezes engraçados, por vezes tocantes, para as páginas do livro.

O relacionamento com os colegas de banda (para quem ainda não sabe, o guitarrista The Edge e o baterista Larry Mullen Jr., além do já citado Adam Clayton) é muito mais focado na amizade entre os quatro e na união permanente entre eles, mesmo com alguns conflitos e dificuldades ao longo das décadas, do que nos aspectos "técnicos" da banda ou de sua trajetória. Fica claro ao longo do livro o respeito e a admiração de Paul por seus companheiros, algo que parece recíproco por parte deles, apesar de muitas vezes o cantor se colocar em posição mais "afastada" do grupo devido a suas muitas atividades "paralelas", principalmente como ativista. Vários membros do "staff" do grupo também merecem destaque no livro, em especial o ex-empresário Paul McGuinness e a coreógrafa Morleigh Steinberg, que viria a ser esposa de Edge. Embora, como já coloquei, o U2 não seja o foco principal do livro, os trechos sobre a banda são, de longe, os mais interessantes para mim, e oferecem a visão de Paul sobre as diversas "fases" do grupo, e como e por que a música da banda foi mudando com o tempo, saindo de um quase pós punk, ganhando influências da música norte-americana, experimentando com elementos eletrônicos e depois voltando a um som mais simples e próximo daquele feito no início de sua discografia.

Contracapa de Surrender: 40 Músicas, Uma História

Surrender: 40 Músicas, Uma História não é o livro definitivo sobre o U2, mas é um belo relato sobre a vida de seu cantor, que, como dito antes, é apenas uma das facetas que Paul David Hewson assumiu ao longo de sua vida. Se você for fã da banda ou do cantor, certamente, é leitura obrigatória. Se não for, pode, mesmo assim, ainda lhe render alguns bons momentos de leitura. Vale a pena arriscar!

domingo, 4 de agosto de 2024

Neil Young With Crazy Horse – Early Daze [2024]


Por Micael Machado

O bardo canadense Neil Young continua escavando seus arquivos musicais, e saindo de lá com pepitas de alto valor histórico para seus fãs. O mais recente lançamento (pelo menos no momento em que escrevo) saído desta aparentemente interminável mina de tesouros são os primeiros registros do cantor e compositor ao lado do Crazy Horse, grupo que iria ser a sua principal banda de apoio nos últimos 55 anos, desde que se uniram pela primeira vez para as gravações do que viria a ser o álbum Everybody Knows This Is Nowhere, lançado em 1969. As faixas que compõem este Early Daze (lançado em CD e vinil, além das hoje obrigatórias plataformas digitais) foram registradas naquele mesmo ano, com o Cavalo Doido ainda contando com sua formação original, com Billy Talbot no baixo, Ralph Molina na bateria (ambos até hoje ao lado de Young no Crazy Horse) e Danny Whitten nas guitarras, músico que viria a falecer em 1972, sendo que as três primeiras músicas ainda contam com Jack Nitzsche no piano, ele que era parte da primeira formação do Cavalo Doido, mas não chegou a participar do primeiro álbum de Young junto ao grupo.

Embora nenhuma música seja realmente inédita (embora a maioria das versões que aparecem no álbum não tenham sido lançadas anteriormente), algumas poderão soar como novidades aos menos atentos à carreira e à discografia de Young. É o caso de "Everybody's Alone", faixa que parece uma sobra de estúdio do Buffalo Springfield, a banda anterior de Young, e que já havia sido lançada anteriormente (ainda que com uma mixagem diferente) no box Neil Young Archives Volume 1, de 2009, ou de "Look At All The Things", cantada por Whitten, e que já havia sido registrada no autointitulado primeiro álbum "solo" do Crazy Horse, de 1971. Por outro lado, esta versão de "Cinnamon Girl" (aqui em uma versão mono) já havia sido lançada em compacto em 1970, e "Down By The River" tem aqui uma mixagem diferente da que aparece no citado Everybody Knows This Is Nowhere, mas, estruturalmente, não apresenta muitas variações em relação à versão original.

Neil Young with Crazy Horse em 1969: Ralph Molina , Billy Talbot, Danny Whitten,
Neil Young e Jack Nitzsche

As maiores "diferenças" que pude perceber encontram-se em "Wonderin’", faixa que teria um registro oficial apenas em 1983, no controverso álbum Everybody's Rockin', e que aqui aparece quase acústica e bem menos "rockabilly" que a versão daquele disco; "Winterlong", cujo lançamento oficial seria apenas na coletânea Decade, de 1977, e que aqui aparece um pouco mais lenta, com um arranjo vocal diferente e mais solos de guitarra que em sua versão mais conhecida; e "Birds", faixa lançada apenas em 1970 no álbum After the Gold Rush, e que aqui tem o piano trocado pelos violões, além de um novo arranjo que a deixou ainda mais melancólica, contando com a participação de todos os membros da banda (com destaque para a bateria de Molina), o que, a meu ver, a tornou ainda melhor (pois a original contava apenas com Young ao piano e vocais - cabe lembrar que esta versão já havia aparecido, com uma mixagem diferente, no citado box Archives Volume 1). No mais, temos uma versão mais roqueira e menos country de "Dance Dance Dance", faixa que aparece em vários registros ao vivo de Young (e também no já citado primeiro álbum "solo" do Crazy Horse), mas que nunca havia tido um registro de estúdio "oficial" anteriormente; uma versão de estúdio mais crua, mas basicamente igual, de "Come On Baby Let’s Go Downtown", que, além de também aparecer no primeiro registro do Cavalo Doido,  conta com uma versão ao vivo lançada no álbum Tonight's the Night, de 1975; e uma versão com um arranjo instrumental diferente (e, aos meus ouvidos, ainda mais tocante) de "Helpless", cujo registro "oficial" apareceria apenas em 1970 no álbum Deja Vu, do super grupo Crosby, Stills, Nash & Young.

Early Daze é um disco que, para os já iniciados na obra de Young, servirá para que eles, assim como eu, apreciem faixas já conhecidas em versões ainda iniciais, além da sempre bem vinda possibilidade de, mais uma vez, testemunhar o talento de Danny Whitten nas seis cordas e nos vocais, talento este que o mundo da música perdeu tão precocemente, infelizmente. Para aqueles não tão familiarizados assim com a discografia do canadense (especialmente aquela tendo o Crazy Horse como companhia), será apenas um bom álbum de uma grande banda saída diretamente do final dos anos 60, fazendo rock and roll como se fazia naquela época, com talento, garra, suor e tesão, ingredientes muitas vezes em falta na música atual. Em ambos os casos, seguramente, vale a audição!

Contracapa de Early Daze

Track List:

1. Dance Dance Dance

2. Come On Baby Let’s Go Downtown

3. Winterlong

4. Everybody’s Alone

5. Wonderin’

6. Cinnamon Girl

7. Look At All The Things

8. Helpless

9. Birds

10. Down By The River

Linkin Park - Papercuts (Singles Collection 2000–2023) [2024]

Por Micael Machado

Seja através de edições especiais de seus primeiros discos, ou de boatos de um retorno com um novo (ou uma nova) vocalista substituindo Chester Bennington, tragicamente falecido em 2017, o nome do grupo Linkin Park vem se mantendo em evidência na mídia nos últimos tempos. Um dos motivos que contribuíram para isto foi o lançamento, no começo deste 2024, da coletânea Papercuts (Singles Collection 2000–2023), primeira compilação de sucessos da carreira do sexteto norte-americano. Com vinte faixas em pouco mais de uma hora, o disco (lançado nos formatos CD, vinil duplo e K7, além das hoje obrigatórias plataformas digitais) percorre quase toda a carreira do grupo, além de trazer algumas raridades e uma faixa inédita.

Pois é justamente por ela que gostaria de começar minha análise desta compilação. "Friendly Fire", colocada na posição de encerramento da coletânea, é uma sobra do último disco de estúdio da banda, One More Light (de 2017), cuja existência já havia sido revelada pelo vocalista e multi-instrumentista Mike Shinoda durante uma transmissão ao vivo na Twitch em junho de 2020, embora na época ela ainda não estivesse finalizada, nem houvessem planos iminentes para seu lançamento. Na versão deste disco (a qual foi lançada como single em 23 de fevereiro de 2024, recebendo também um clipe oficial), a faixa se revela uma quase balada repleta de elementos eletrônicos, tendendo muito mais para o lado pop da música do grupo do que aquele nu metal dos primeiros anos, aspecto ressaltado pela letra, que trata de um relacionamento se acabando, apesar das duas partes, aparentemente, não desejarem isto! A meu ver, uma faixa apenas mediana, como muitas outras nos últimos discos do grupo.

O Linkin Park, em foto promocional do lançamento da coletânea: Phoenix, Joe Hahn,
Chester Bennington, Mike Shinoda, Brad Delson e Rob Bourdon

O repertório de Papercuts ainda conta com duas faixas que não são exatamente inéditas, mas que podem ser consideradas como raridades para os fãs da banda. Lançada originalmente no EP LP Underground 6.0 (de 2006, disponibilizado apenas para o fã clube oficial do grupo), "QWERTY" foi gravada durante as sessões que resultariam no disco Minutes to Midnight (de 2007), e representa com precisão a mistura de nu metal com rap que o sexteto costumava fazer no começo da carreira, alternando momentos mais pesados com outros em que o rap de Shinoda fica em evidência. Mais antiga ainda, "Lost" foi composta durante as gravações do segundo álbum, Meteora (de 2003), e lançada em uma versão demo na edição de vigésimo aniversário do disco, em 2023, e é uma faixa que já aponta os rumos mais pop que a banda adotaria em pontos futuros de sua carreira, embora ainda conte com algumas passagens mais pesadas de guitarra aqui e ali. Ainda no campo de "raridades", embora bem mais fácil de ser encontrada, podemos incluir "New Divide", originalmente presente na trilha sonora do filme 'Transformers: Revenge of the Fallen" (de 2009), e cuja versão de estúdio pela primeira vez faz parte de um álbum oficial da banda, visto que uma versão ao vivo já havia sido incluída no disco One More Light Live, de 2017.

O restante do track list, embora não esteja organizado de forma cronológica, parece, pela quantidade de músicas escolhidas para cada álbum, ressaltar o quanto a carreira do Linkin Park foi perdendo qualidade com o passar dos anos. Dos dois primeiros discos (Hybrid Theory e o já citado Meteorapara mim, os melhores da banda), foram selecionadas quatro músicas de cada um. Do terceiro, o também citado Minutes to Midnight, foram incluídas três faixas. De Living Things (2012), o quinto registro, foram incluídas duas músicas, e os demais discos de estúdio contribuíram com apenas uma faixa cada um, com exceção de The Hunting Party, de 2014, penúltimo registro de inéditas (e, para mim, um dos destaques na discografia do grupo, pois foi um álbum onde os músicos abandonaram um pouco o lado mais pop que vinha dominando as canções mais recentes do sexteto para fazer uma espécie de "volta às raízes" mais pesadas dos primeiros discos), o qual, infelizmente, nem chegou a ser representado nesta compilação, que ainda conta com uma faixa retirada de Collision Course, disco lançado em 2004 em parceria com o rapper Jay-Z, onde músicas dos dois artistas foram mixadas em "mashups" para criar faixas inéditas.

Contracapa da versão em CD de Papercuts (Singles Collection 2000–2023) 

Se você for um colecionador bastante dedicado do Linkin Park, Papercuts (Singles Collection 2000–2023) talvez lhe atraia por causa de "Friendly Fire", ou, talvez, de uma das demais "raridades" que apontei no texto. Se você nunca suportou ouvir a música do Linkin Park (ou se afastou do grupo a partir da guinada mais pop ocorrida a partir do terceiro álbum), não vai ser esta coletânea que vai mudar seu pensamento. Mas, se você for um ouvinte casual do grupo, e gosta de alguma faixa que ouviu aqui ou ali em algum lugar, é bem possível que esta música esteja nesta compilação, pois, como reunião de "hits" da banda, o álbum cumpre muito bem seu objetivo. Se este for o seu caso, pode dar uma chance ao registro, pois possivelmente vai encontrar algo de seu agrado!

Track List:

1. Crawling

2. Faint

3. Numb / Encore

4. Papercut

5. Breaking The Habit

6. In The End

7. Bleed It Out

8. Somewhere I Belong

9. Waiting For The End

10. Castle Of Glass

11. One More Light

12. Burn It Down

13. What I've Done

14. QWERTY

15. One Step Closer

16. New Divide

17. Leave Out All The Rest

18. Lost

19. Numb

20. Friendly Fire