quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Richie Ramone – Live To Tell [2023]


Por Micael Machado

O baterista Richard Reinhardt adotou o nome artístico de Richie Ramone quando juntou-se aos Ramones em 1983, permanecendo na banda até 1987, e gravando três discos que estão, na minha opinião, dentre os melhores trabalhos da discografia dos "brothers" nova-iorquinos, além de ter sido o primeiro baterista do grupo a compor, fazer backing vocals e até cantar as partes principais em algumas demos e B-Sides do quarteto. Sua saída do conjunto nunca foi bem explicada até hoje, assim como não se tem muita informação do que ele fez da vida entre largar as baquetas dos Ramones e assumir uma carreira solo como cantor e baterista com o lançamento de Entitled, em 2013 (ainda que ele participe em algumas faixas de ...Ya Know?, o segundo lançamento póstumo de Joey Ramone). Desde então, Richie vem excursionando constantemente, tendo várias passagens pelo Brasil, inclusive uma primeira apresentação em Porto Alegre, cidade onde moro, em novembro de 2023, na qual tive a chance de trocar algumas palavras com o músico, autografar alguns itens dos Ramones, e adquirir o vinil de seu terceiro trabalho como artista solo, intitulado Live To Tell, sobre o qual gostaria de tratar neste texto.

Produzido pelo próprio Richie Ramone, e lançado pela gravadora Outro Records com edições em CD e em vinil (preto e transparente, esta limitada a 250 cópias), o disco conta, além de Richie nos vocais e bateria, com sua fiel escudeira Clare Misstake no baixo e backing vocals (a qual já havia participado do disco anterior), além das guitarras de Marc Diamond (que só não participa do remix de "The Last Time", faixa que já havia aparecido em um Flexi-disc da revista norte-americana New Noise em 2018), Ronnie Simmons (que não participa de três músicas) e dos teclados de Paul Roessler, além da participação especial do guitarrista Ben Reagan na citada "The Last Time".

Parte do encarte da versão em CD de Live To Tell

Se em seu segundo disco, Cellophane, de 2016, Richie aproximava a sonoridade de suas músicas do proto-punk garageiro de Detroit nos anos de 1969 ou 1970 (mais notadamente, do estilo adotado por bandas como Stooges ou MC5 naqueles tempos), neste novo registro o baterista parece "voltar às origens", e resgata muito do estilo de seus tempos de Ramones em suas novas composições. As velozes "Suffocate" (que ganhou um vídeo oficial de divulgação) e "Who Stole My Wig" (cujo título e letra parecem uma grande tiração de sarro com a "lenda" - "lenda"? kkkk! - do uso de uma peruca por parte de Marky Ramone, o antecessor - e sucessor - de Richie nos Ramones) remontam às faixas mais hardcore gravadas pelos "brothers" naquela época, enquanto "Not Afraid" (composta pelo guitarrista Marc Diamond) e "When The Night", apenas de um pouco mais leves, ainda são rápidas o suficiente para agradar aos saudosos fãs da antiga banda do baterista. "Master Plan" se aproxima mais do poppy-punk que o grupo praticou nos tempos com CJ no baixo, mas tem um pianinho que remete a algumas faixas dos três registros com Richie na bateria, e, se "Find Our Place" é um pouco mais lenta que o normal da banda, mas ainda soa como uma composição dos Ramones, a faixa título precisaria só de alguns poucos ajustes para se encaixar perfeitamente no track list de um disco como Too Tough To Die, a estreia de Richie com seu antigo grupo.

As cadenciadas "Old Ways" e "Other Things" parecem sobras do disco anterior, e a baladaça "I Sit Alone (Yeah Yeah)", com começo ao piano e um clima bem tristonho, tem uma frase que parece remeter ao antigo grupo de Richie ("Eu não acredito em milagres, porque sou só um tolo, e me sento aqui sozinho agora, com o meu tempo acabando"). Fechando o repertório do disco, há uma sombria versão para "Cry Little Sister", música tema do filme de 1987 "Os Garotos Perdidos" ("The Lost Boys", no original), cover esta que já havia aparecido na trilha sonora do filme "Protege Moi", e saído como "lado B" do compacto promocional para "Not Afraid", lançado como prévia do disco completo também em 2023.

Contracapa da versão em vinil de Live To Tell

Como cantor, Richie não obtém um destaque tão grande assim. Sua voz soa bem mais "desgastada" que em seus tempos de Ramones, mas se adapta bem ao estilo de suas novas músicas, além de seus vocais serem muito bem complementados pelos backings de Clare, que manda muito bem no baixo, assim como seus companheiros das seis cordas. Live To Tell não é o disco que vai mudar sua vida, mas, certamente, vai lhe garantir quase quarenta minutos de boas audições e muita diversão! Se tiver oportunidade, vale conferir!

"Well my life is kinda crazy, and I´m not replaceable. I live to tell another day!"

Track List:

1. Live To Tell

2. When The Night

3. Who Stole My Wig 

4. Old Ways 

5 Find Our Place

6. I Sit Alone (Yeah Yeah)

7. Not Afraid 

8. Cry Little Sister

9. Suffocate

10. Other Things

11. Master Plan 

12. The Last Time (Remix)

Neil & the Horse - Fu##in' Up [2024]

Por Micael Machado

Se fizessem um ranking apenas dos álbuns gravados por Neil Young de 1980 até hoje, Ragged Glory certamente estaria, na minha opinião, no Top 5 desta hipotética lista. Lançado em 1990, na esteira do sucesso comercial de seu antecessor, Freedom, do ano anterior, o disco mostra o bardo canadense e seus fiéis escudeiros em músicas mais focadas nas guitarras de Neil e Poncho, como poucos discos anteriores em sua carreira haviam feito até então, trazendo faixas que perdurariam com destaque em suas turnês posteriores (como "Country Home", "Over and Over", "Love to Burn" e, especialmente, "Love and Only Love", que chegou a ter uma versão que ultrapassa os vinte e oito minutos registrada no disco ao vivo Earth, de 2016), e legando pelo menos um grande clássico para a carreira de Young, na forma de "F*!#in’ Up", a qual, pela versão registrada pelo Pearl Jam no álbum ao vivo Live on Two Legs, posso dizer que foi a minha "porta de entrada" para o mundo musical de Neil Young. A turnê de promoção para Ragged Glory rendeu pelo menos dois registros ao vivo (Weld, de 1991, e Way Down in the Rust Bucket, tirado dos "arquivos" do canadense e colocado no mercado em 2021), onde quase todas as faixas do álbum original ganharam sua versão "on stage", sendo que as duas únicas que não constam nestes dois discos podem ser conferidas "ao vivo" no já citado Earth (no caso de "Mother Earth (Natural Anthem)") ou no acústico Songs For Judy (no caso de "White Line", que no disco citado, aparece em registro de 1976, embora o álbum, mais um dos muitos registros resgatados "dos arquivos" de Neil, só tenha sido lançado em 2018).

Por tudo isto, foi com certa surpresa que li, no começo deste ano, que Young iria lançar uma versão "regravada" de Ragged Glory, ao lado do Crazy Horse atual (os "velhos companheiros" Billy Talbot no baixo e Ralph Molina na bateria, além de Nils Lofgren nas guitarras e piano, substituindo o hoje aposentado Frank "Poncho" Sampedro), e com a adição "especial" do guitarrista e tecladista Micah Nelson, filho da lenda do Country Willie Nelson, e que já havia tocado por anos ao lado do canadense como parte do Promise of the Real, grupo que acompanhou Neil entre 2014 e 2019. Como praticamente toda a participação da audiência foi retirada da mixagem final (assim como os intervalos entre as faixas e as interações entre banda e plateia), nem uma primeira audição desta "regravação", nem o pouco informativo encarte (que contém algumas ilustrações que remetem à arte original do álbum Zuma, como você pode conferir na imagem que abre este texto) me deixaram perceber que o "novo" Ragged Glory, agora chamado de Fu##in' Up (e disponibilizado no mercado em abril deste 2024, nos formatos CD e vinil duplo, além das plataformas digitais) era, na verdade, a execução ao vivo quase que integral do álbum original (apenas "Mother Earth (Natural Anthem)" acabou excluída), com as faixas seguindo a ordem do registro de estúdio, e gravadas, com pude descobrir depois graças a alguns artigos na internet, em uma única noite (4 de novembro de 2023) no pequeno clube The Rivoli, na cidade de Toronto, no Canadá, em um show "secreto" feito em uma festa privada de aniversário para um bilionário local chamado Dani Reiss (do qual, confesso, eu nunca havia ouvido falar). Uma publicação no blog norte-americano "Thrasher's Wheat", feita por um fã de Young identificado apenas como Stu, relatou que o autor do texto conseguiu ouvir boa parte do show mesmo estando do lado de fora do clube, e que os convidados da festa com quem ele havia tido contato após a apresentação não eram tão "familiarizados" assim com a carreira do canadense, mas estavam todos "em êxtase" após a performance do grupo.

Uma das imagens do encarte de Fu##in' Up que remetem à arte do álbum Zuma, de 1975

Performance esta que, pelo que se pode ouvir no registro lançado oficialmente, foi realmente empolgante. Não sei se foi decisão da banda ou um pedido do aniversariante a execução quase integral deste álbum em específico, mas a escolha foi super acertada. Todas as músicas soam mais "cruas" aqui do que a versão de estúdio original (e mesmo em comparação a outras versões ao vivo já lançadas) e a adição de Micah traz um ganho enorme aos arranjos, que, embora não tão diferentes assim em relação aos originais, ganham aqui duelos de guitarra entre o jovem Nelson e Young, além da presença do piano (ao qual se revezam Micah e Nils, sem que o encarte especifique quem toca o quê em qual faixa) trazer um sabor "novo" a faixas como "Over and Over" ou "Mansion On The Hill". Algumas faixas ganharam solos estendidos, o que aumentou sua duração em relação às faixas originais, como é o caso da própria "Mansion On The Hill", com dois minutos a mais que a versão de estúdio, de "Love to Burn", que "ganhou" quase três minutos, e de "Love and Only Love", com quase cinco minutos de acréscimos.

Infelizmente, as quatro faixas "extras" lançadas em 2023 no EP que leva o título Smell the Horse (parte do box Official Release Series Vol. 5) não foram interpretadas neste show, e o bis executado na festa (constando, segundo Stu no artigo citado acima, das clássicas "Cinamon Girl" e "Rockin' in the Free World") acabou ficando de fora deste lançamento, o qual, seguindo a ideia de "segredo" dedicada à apresentação original, teve todos os nomes das faixas alterados, com os novos títulos se utilizando de frases das letras originais (a única exceção foi a cover para "Farmer John", do duo Don and Dewey, que manteve seu título original), e que pode até não interessar muito àqueles não tão dedicados assim à obra de Neil Young, mas que será uma bela adição à discografia de seus seguidores, especialmente aos fãs do disco original, que, apesar de já terem todas estas faixas disponíveis em outros discos ao vivo, podem encontrá-las aqui em versões "renovadas", e reunidas, pela primeira vez, em versões "live" na sequência original, sem interrupções para aplausos ou "falatórios" por parte dos músicos, como já citado acima. Se você , assim como eu, for um admirador de Ragged Glory, pode conferir sem medo esta "nova versão", e boa diversão.

Contracapa a versão em CD de Fu##in' Up

Track List:

1. City Life [Country Home]

2. Feels Like A Railroad (River Of Pride) [White Line]

3. Heart Of Steel [F*!#in’ Up]

4. Broken Circle [Over And Over]

5 Valley Of Hearts [Love To Burn]

6. Farmer John

7. Walkin' In My Place (Road Of Tears) [Mansion On The Hill]

8. To Follow One's Own Dream [Days That Used To Be]

9. A Chance On Love [Love And Only Love]

Zakk Sabbath – Doomed Forever Forever Doomed [2024]

Por Micael Machado

Desde 2014, o músico Zakk Wylde (também do Black Label Society, ex-Ozzy Osbourne e Pride & Glory) mantém um tributo ao Black Sabbath chamado Zakk Sabbath. Além de um single e de um EP ao vivo, o trio, formado atualmente, além de Wylde nas guitarras e vocais, por Blasko (também da banda de Rob Zombie e ex-Ozzy Osbourne, dentre outros projetos) no baixo e Joey "C" Castillo (ex-Queens of the Stone Age e Danzig, dentre outros projetos) na bateria, já havia lançado em 2020 o álbum Vertigo, no qual fazia uma releitura na íntegra para o disco de estreia do quarteto de Birmingham. Em março deste 2024, foi lançado Doomed Forever Forever Doomed, álbum duplo (nas versões CD, vinil e K7 - este simples) que traz o Zakk Sabbath reinterpretando tanto o segundo quanto o terceiro discos do quarteto inglês (aos mais desinformados, chamados Paranoid, de 1970, e Master of Reality, de 1971, respectivamente), embora as músicas não estejam na mesma ordem dos álbuns originais.

Eu mesmo cheguei a assistir a um show do Zakk Sabbath em Porto Alegre no ano de 2017, onde o trio interpretou músicas dos quatro primeiros discos dos ingleses em um Bar Opinião praticamente lotado. Naquele concerto, ficou claro para mim que Blasko e Castillo formam uma cozinha sólida e respeitável, mas que o grande destaque é e sempre será o "chefão" Wylde, que, se como cantor consegue não soar muito distante dos registros originais das canções (no início da carreira do Black Label Society, eu achava a voz de Zakk muito semelhante à de Ozzy, e, embora seu registro vocal tenha mudado um pouco com o passar do tempo, não se alterou tanto assim para se afastar de vez desta semelhança), como guitarrista (e um dos melhores de sua geração, como é praticamente consenso), mostra ser plenamente capaz de reproduzir perfeitamente os riffs e passagens originais do mestre Tony Iommi, além de, muitas vezes, "estender" os solos de algumas músicas para agregar suas próprias características, como os vibratos e harmônicos que o tornaram tão famoso no meio do heavy metal.

E é mais ou menos a mesma coisa que se encontra neste novo registro desta banda tributo. A maioria das versões pode ser descrita da mesma forma: baixo e bateria seguindo quase fielmente as linhas originais das canções do Sabá Negro, assim como as linhas vocais (que, como já escrevi, não chegam a causar um estranhamento maior devido à semelhança dos cantores) e as letras das músicas, que, aparentemente, não sofreram alteração alguma. Já as partes de guitarra também soam bem próximas das originais nos riffs e frases das faixas (respeitando-se as questões de timbres e estilos de tocar, pois Zakk aqui e ali "encaixa" algumas passagens e "barulhos" que não existem nos discos homenageados), sendo nos solos que se encontram as maiores diferenças, onde, quase sempre, Wylde inicia os mesmos respeitando as versões gravadas por Iommi, mas logo os subvertendo para transformá-los em algo próprio, mais adequado ao seu próprio estilo de tocar, o qual, por vários momentos, se diferencia bastante daquele usado pelo guitarrista do quarteto inglês.

O trio Zakk Sabbath: Zakk Wylde, Joey Castillo e Blasko

Curiosamente, são nas músicas mais "calmas" que notamos as maiores mudanças nestas versões do Zakk Sabbath em relação às da banda inglesa. O timbre do violão utilizado em "Embryo", e, também, em "Orchid", é diferente do instrumento utilizado nas versões originais, sendo que, na segunda, senti falta daquele "roçar" dos dedos no instrumento que Iommi registrou originalmente. "Planet Caravan" ganhou linhas de piano (segundo a contracapa, a cargo do próprio Wylde) e mais partes de guitarra (além de um longo solo deste instrumento), além do vocal ser menos "etéreo" que o original, apresentando até algumas partes dobradas, as quais também aparecem em "Solitude", levada quase toda ao piano, com um vocal bem mais grave que o da original, e apresentando algumas linhas de guitarra que não aparecem na versão de 1971. Já em "Rat Salad", Wylde aproveita o trecho inicial para criar passagens de guitarra diferentes da versão original (algo que também acontece no início de "Fairies Wear Boots"), com o solo de Castillo também sendo diferente (e mais curto) do que aquele registrado por Bill Ward no disco de 1970.

Muitos podem questionar qual a função de um disco como este em pleno 2024, pois já existem os registros originais destas canções, presentes em álbuns considerados como "clássicos" ainda hoje, além de diversas versões ao vivo e de covers espalhadas em vários tributos e álbuns pelo mercado (e, na minha opinião, nenhuma das presentes aqui consegue superar suas "concorrentes" lançadas no primeiro Nativity in Black: A Tribute to Black Sabbath, de 1994). Mas, já que não temos mais nem o Black Sabbath, nem a banda de Ozzy Osbourne excursionando regularmente pelo mundo, esta é uma maneira de manter o legado do quarteto de Birmingham vivo, além de, talvez, ser uma forma de apresentar estes clássicos a uma nova geração que, possivelmente, seja fã do Black Label Society (e, por consequência, de Zakk Wylde), mas que, por algum motivo obscuro, não tenha sido apresentada ao Sabbath original (embora eu mesmo tenha minhas dúvidas se existe alguém assim). De toda forma, é bastante divertido tentar descobrir para onde Zakk levará seus solos de guitarra a cada "desvio" do "caminho" original das canções, e ver como o estilo e a percepção de cada artista pode criar algo novo e fascinante mesmo sobre uma fundação já plenamente estabelecida, como a destas canções clássicas. Se quiser experimentar a sensação, tenho certeza que conseguirá apreciar a jornada por estas "novas" versões, ainda que as originais permaneçam imbatíveis em sua memória!

Contracapa de Doomed Forever Forever Doomed


Track List

CD 1: Doomed Forever

1. War Pigs

2. Paranoid

3. Planet Caravan

4. Iron Man

5. Electric Funeral

6. Hand Of Doom

7.Rat Salad

8. Fairies Wear Boots


CD 2: Forever Doomed

1. Sweet Leaf

2. After Forever

3. Embryo

4. Children Of The Grave

5. Orchid

6. Lord Of This World

7. Solitude

8. Into The Void

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Rainbow – Long Live Rock 'N' Roll [1978]

Por Micael Machado

Em abril de 1977, era chegado o momento do Rainbow voltar ao estúdio e gravar seu terceiro disco, que tinha a tarefa de ser o sucessor de Rising, lançado no ano anterior com grande aclamação por parte da crítica e do público. Para tanto, o quinteto formado pelo guitarrista Ritchie Blackmore, o vocalista Ronnie James Dio, o baterista Cozy Powell, o tecladista Tony Carey e o baixista Mark Clarke (então recém incorporado ao time) se reuniu no Château d'Hérouville, na França, sem quase nada pré-escrito, e, junto ao produtor Martin Birch, tentaram compor e gravar o álbum nas semanas seguintes. Entretanto, as coisas não correram muito bem, com Blackmore mais interessado em jogar futebol nos pátios do castelo que abrigava o estúdio, enquanto Powell preferia correr com sua Ferrari pelos arredores do local. Clarke acabou demitido no meio das sessões (com Ritchie assumindo também o baixo dali em diante, mesmo que Dio já tivesse empunhado o instrumento anteriormente em sua carreira), e, no embalo, Carey também acabou expulso da banda. O trio remanescente chegou a julho daquele ano com sete demos praticamente prontas, mas suspendeu as sessões para o lançamento do álbum duplo ao vivo On Stage naquele mesmo mês, outro disco que obteve grande repercussão positiva tanto dos críticos quanto dos fãs da banda, que, rapidamente, recrutou Bob Daisley para o baixo e David Stone para os teclados, saindo em turnê pela Europa para divulgar seu então mais novo sucesso. Foi apenas em dezembro de 1977 que a nova formação, agora já "azeitada" pelos meses na estrada, retornou ao Château d'Hérouville para finalizar o novo disco, que seria chamado de Long Live Rock 'N' Roll, e lançado em abril do ano seguinte. Com as sete faixas registradas anteriormente, acrescidas de um novo "épico" na discografia da banda, o Rainbow lançava um álbum que receberia uma aprovação quase unânime de seus fãs, embora eu, particularmente, o considere o mais "fraco" da "fase Dio" do conjunto.

Com quatro composições de cada lado na versão em vinil, para mim, é fácil dividir as canções do disco em "duplas", com posições quase equivalentes na ordem das músicas dos lados A e B. Abrindo o LP, temos a faixa título, um potente hard rock que pode ser considerado um legítimo sucessor de "Man on the Silver Mountain", que também abria o primeiro registro do grupo, embora seja mais rápida (e mais "simples", a meu ver) que sua antecessora. A música se tornou um hino na carreira da banda, sendo executada em praticamente todos os shows do Rainbow dali em diante, independentemente de quem fosse o cantor na ocasião. Já a abertura do lado B traz outro clássico do grupo, na forma de "Kill the King", composição que também abria On Stage, e que, em sua versão de estúdio, sempre me soou mais "pálida" em relação à versão ao vivo do disco anterior. Apesar de bastante rápida, neste disco, a velocidade do arranjo me parece um pouco menor, e fazem falta as linhas de teclado que aparecem no disco ao vivo, com os melhores momentos do instrumento sendo substituídos por linhas da guitarra de Blackmore, o que não é de forma nenhuma ruim, mas me soa menos interessante que os "duelos" entre os instrumentos demonstrados na versão ao vivo.

A segunda faixa do lado A, "Lady of the Lake", e a terceira do lado B, "Sensitive to Light", parecem apontar para a sonoridade mais "americanizada" e "comercial" que Ritchie imporia ao grupo nos anos seguintes. Ambas não tem muitas variações nos arranjos, e são bem menos complicadas do que outras faixas da carreira do grupo até então, além de possuírem refrães bastante "acessíveis", que parecem destinados a agradar mais ao público "médio" das FMs americanas de então do que ao público fiel da banda (ainda que a primeira conte com um interessante solo ali pelo meio, e a segunda ser um pouco mais veloz do que o usual para as músicas "populares" das rádios da época).

O Rainbow em 1977: David Stone (teclados), Ronnie James Dio (vocais), Bob Daisley (baixo), Ritchie Blackmore (guitarra) e Cozy Powell (bateria)

Invertendo as posições na ordem do vinil, a terceira faixa do lado A, "L.A. Connection", e a segunda faixa do lado B, "The Shed (Subtle)", já me soam mais características da sonoridade tradicional do Rainbow. "L.A. Connection", que viria a ser o segundo single do álbum, apesar de seu riff repetitivo e de seu andamento mais cadenciado, não soa deslocada em relação ao estilo dos álbuns anteriores do grupo britânico, e, a meu ver, com um pouco mais de "peso" nas guitarras e um solo diferente, não soaria estranha no meio das faixas que Dio viria a gravar posteriormente com o Sabbath ou mesmo nos primeiros discos de sua carreira solo (a faixa ainda conta com algumas linhas de piano na sua parte final, em uma das poucas participações efetivas de David Stone no álbum, visto que ele também registrou os teclados, além desta música, apenas em "Gates of Babylon", "Kill the King" e "The Shed", com Tony Carey sendo o responsável pelas teclas na faixa título, em "Lady of the Lake" e em "Rainbow Eyes", e Bob Daisley tendo gravado o baixo apenas em "Gates of Babylon", "Kill the King" e "Sensitive to Light", com as demais linhas do instrumento sendo todas registradas por Blackmore). Já "The Shed (Subtle)" tem uma introdução na guitarra que lembra algumas coisas que Ritchie fazia no palco desde seus tempos no Deep Purple, com o riff da canção sendo um dos melhores do disco, e a condução de Powell ganhando destaque ao longo da duração da faixa, em uma canção que, para mim, merecia um reconhecimento muito maior tanto por parte dos fãs quanto da própria banda, pois eu, pelo menos, desconheço que tenha sido interpretada ao vivo alguma vez depois de lançada.

Ao final de cada lado do LP, temos os dois épicos do disco. Fechando o lado A, vem "Gates of Babylon", a única faixa composta depois daquelas demos de julho de 1977, sendo possivelmente a música mais complexa musicalmente já composta pela banda (visto "Difficult to Cure" ser baseada na nona sinfonia de Beethoven), a qual conta com a participação especial da orquestra Bavarian String Ensemble, que acrescenta um toque "clássico" à esta gravação, fazendo-nos lembrar de "Stargazer", épica composição presente no álbum anterior (que também contava com uma orquestra), e da qual este clássico pode ser considerado um legítimo sucessor. Encerrando o lado B (e também o disco), vem a baladaça "Rainbow Eyes", uma linda faixa com a presença de um quarteto de cordas e de uma flauta (tocada pelo músico alemão Rudi Risavy, que possui uma carreira como violinista e flautista que eu, honestamente, desconheço), a qual pode ser considerada sucessora direta de "Catch the Rainbow", do primeiro disco da banda (embora algo em seu arranjo sempre tenha me remetido a outra faixa deste disco, no caso, "The Temple of the King").

A arte da capa, feita pela artista britânica Debbie Hall, traz um desenho do quinteto na formação que excursionou para sua promoção, e, na parte interna, temos a imagem que abre esta matéria, onde se vê alguns membros da plateia de um show segurando um cartaz onde se lê o título do disco (foto esta que, na verdade, vem de um show do Rush, com a imagem original do cartaz sendo substituída pela frase "Long Live Rock 'n' Roll", e as camisetas dos fãs dos canadenses pintadas de preto para não "entregar" o engodo). Long Live Rock 'N' Roll foi relançado algumas vezes, com destaque para a edição deluxe de 2012, que traz versões com mixagens "cruas" para as sete demos gravadas antes do lançamento de On Stage (onde Ritchie se encarregou de todos os baixos, e cujas maiores diferenças estão na falta do solo de guitarra em "The Shed", na ausência da orquestra e na presença de diferentes linhas de flauta em "Rainbow Eyes", e na presença de uma calma introdução feita nos teclados em "Lady of the Lake", a qual acabou de fora da versão final da faixa), além de versões de ensaio para a faixa título e para "Kill the King", e de três faixas (e dois outtakes) do disco gravadas para o então popular programa de TV norte-americano Don Kirschner Show em maio de 1978, onde a banda fez "playback" nas partes instrumentais, com apenas Dio cantando "ao vivo" realmente. 

Contracapa de Long Live Rock 'N' Roll

A turnê de promoção do álbum levou o Rainbow para sua maior excursão pelos Estados Unidos, onde a banda se apresentaria mais de 40 vezes ao longo de 1978, sendo que a obsessão de Blackmore de conquistar este mercado levaria o quinteto a abrir mão de fazer uma excursão possivelmente esgotada pelo Japão para se dedicar ao público norte-americano, mesmo que, na maioria das vezes, servindo como grupo de abertura para bandas como Cheap Trick ou REO Speedwagon. Ainda em 1978, os primeiros encontros para composição do quarto disco deixaram escancaradas as divergências musicais e pessoais entre o guitarrista e Ronnie James Dio, com o cantor saindo (ou tendo "sido saído") do grupo ainda naquele ano (para depois ir se juntar ao Black Sabbath em 1979). David Stone e Bob Daisley também foram "convidados a se retirar" por Ritchie, e foi uma banda totalmente reformulada (tanto em seus componentes quanto musicalmente) que viria a gravar o sucessor de Long Live Rock 'N' Roll, que, como já escrevi, ainda é, para mim, o registro mais "fraco" da "fase Dio" do Rainbow, mas que, comparado ao que veio depois, fica, certamente, nas primeiras posições de uma hipotética lista de "melhores álbuns" desta grande banda britânica. Se ainda não o fez, ouça e confira!

Track list da versão em vinil:

Lado A

1. Long Live Rock 'N' Roll

2. Lady Of The Lake

3. L.A. Connection

4. Gates Of Babylon

Lado B

1. Kill The King

2. The Shed (Subtle)

3. Sensitive To Light

4. Rainbow Eyes

Segundo CD da versão deluxe de 2012:

1. Lady of the Lake - Rough mix, 4 July 1977

2. Sensitive to Light - Rough mix, 4 July 1977

3. L.A. Connection - Rough mix, 4 July 1977

4. Kill the King - Rough mix, 4 July 1977

5. The Shed (Subtle) - Rough mix, 4 July 1977

6. Long Live Rock 'n' Roll - Rough mix, 4 July 1977

7. Rainbow Eyes - Rough mix, 4 July 1977

8. Long Live Rock 'n' Roll - Shepperton Film Studios rehearsal, August 1977

9. Kill the King - Shepperton Film Studios rehearsal, August 1977

10. Long Live Rock 'n' Roll - Live on the Don Kirschner Show, May 1978

11. L.A. Connection - Live on the Don Kirschner Show, May 1978

12. Gates of Babylon - Live on the Don Kirschner Show, May 1978

13. L.A. Connection - Outtake from the Don Kirschner Show, May 1978

14. Gates of Babylon - Outtake from the Don Kirschner Show, May 1978

domingo, 25 de agosto de 2024

Resenha de Livro: Surrender: 40 Músicas, Uma História [2022]

Por Micael Machado

O livro Surrender: 40 Músicas, Uma História (no original: "Surrender: 40 Songs, One Story") não é a história do U2. Também não é a história de Bono, o vocalista da banda. É a autobiografia de Paul David Hewson, um filho, irmão, marido, pai, amigo fiel de seus amigos, religioso, ativista (político e ambiental, dentre outros interesses), "atualista" (ele explica o termo em um dos capítulos da obra) e um artista que (aparentemente, apenas de vez em quando) "incorpora" a persona de cantor em uma banda de rock (cantor este que já foi Bono Vox, depois virou Bono, The Fly, MacPhisto, até voltar a ser Bono outra vez). É claro que a história da banda permeia e perpassa as 640 páginas do livro (lançado no Brasil pela editora Intrínseca, com excelente tradução de Rogério W. Galindo), divididas em 40 capítulos (cada um levando o nome de uma música da banda, as quais não são as mesmas presentes no disco Songs Of Surrender, lançado como "acompanhamento" ao livro) supostamente escritos pelo próprio Paul, mas o U2 está longe de ser o principal foco da narrativa.

A perda precoce da mãe (quando Paul tinha apenas 14 anos de idade), o difícil relacionamento com o pai (cheio de altos e baixos) e com o irmão mais velho (que, pelo texto, parece ser meio ausente na vida do rapaz), a amizade com outros garotos de Cedarwood Road, a rua de Dublin onde morou pela infância, adolescência e começo da vida adulta, o encontro e a fulminante paixão (descoberta ainda na adolescência) com Alison Stewart, que viria a se tornar sua esposa e mãe de seus quatro filhos, os primeiros encontros (ainda na escola) e os ensaios iniciais com aqueles que viriam a ser os outros membros do U2, e as inseguranças de um Paul ainda adolescente permeiam as primeiras páginas do livro, que segue em ordem cronológica, focando hora na música, hora na vida pessoal, hora em pensamentos e nas dúvidas (pessoais, religiosas, filosóficas) do autor, narrando a trajetória do homem Paul em paralelo com a história da banda da qual ele faz parte.

É o sucesso e a visibilidade que o U2 alcança que permitem que Paul participe, como Bono, do Live Aid, em 1985. A partir daí, o lado ativista do cantor se intensifica, e, se antes ele e a esposa se preocupavam mais com questões locais da Irlanda (o antigo conflito religioso entre católicos e protestantes que separa os irlandeses é tratado em vários pontos do livro), este evento faz com que o casal passe a se preocupar mais com as mazelas da África e a lutar para melhorar a situação dos habitantes daquele continente (seja em questões financeiras, quanto em questões de saúde, especialmente na luta pelo tratamento das pessoas com Aids), inclusive com várias visitas a diferentes países africanos, as quais são narradas por Hewson de uma forma que deixa explícita as dificuldades dos habitantes locais e daqueles que tentam lhes ajudar, sem nenhuma "passação de pano" para a situação caótica de alguns países do continente, tanto em termos econômicos, quanto em termos sociais. Os problemas da América Central também preocupam ao casal, com Paul compondo "Mothers of the Disappeared" depois de conhecer as mães de El Salvador que haviam perdido seus filhos durante a guerra civil no país, e que, como o autor escreve, "não apenas sofreram a dor de perder seus entes queridos, como foram submetidas ao insulto adicional de não conseguirem recuperar seus corpos".

Algumas páginas de Surrender: 40 Músicas, Uma História

É este lado ativista que traz para a narrativa a participação de importantes líderes mundiais, como o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, a ex-chanceler alemã Angela Merkel, o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbatchev, o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, os ex-presidentes dos Estados Unidos Bill Clinton e Barack Obama, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, o também músico Bob Geldof, "figurões" como Steve Jobs e Bill Gates e até o Papa João Paulo II. A participação de Paul em reuniões com todas estas pessoas (em épocas diferentes) para tentar perdoar a dívida externa dos países africanos, para tentar conseguir condições melhores de tratamento da epidemia de AIDS ou para construir escolas e hospitais no mesmo continente, junto a entidades como a RED ou a ONE (ou por outras causas importantes para o autor) ocupa boa parte das páginas do livro, e os encontros que o ativista Paul tem com estas pessoas e com outras menos famosas, mas não menos importantes ou interessantes, levam a relatos por vezes engraçados, em outros momentos tensos, mas, em sua maioria, comoventes e reveladores sobre a difícil situação das pessoas em um continente ao qual seria muito fácil para um milionário como ele simplesmente fingir ignorar a existência, mas para quem Hewson se dedica de corpo e alma, muitas vezes em detrimento do tempo que dedica a seu casamento e à sua banda. Pessoalmente, confesso que achei muito extensa a quantidade de páginas que abordam este lado "ativista" do autor, mas o texto deixa muito clara a importância desta faceta na vida de Paul, e o quanto ele se dedica de corpo e alma às questões que abraça!

Já o lado artista (e o sucesso do U2) permite o encontro do autor com muitas figuras lendárias do mundo da música. Se algumas delas não chegam a ser surpresa, por já terem gravado ao lado do U2 ou de Bono (como os produtores Brian Eno, Daniel Lanois, Steve Lillywhite e Flood, ou os músicos Bob Dylan, B.B. King, Johnny Cash, Luciano Pavarotti ou Frank Sinatra), outras surgiram de forma, para mim, bastante inesperada, como é o caso do cantor Michael Hutchence (do INXS), do produtor Quincy Jones, da cantora e poetisa Patti Smith e dos músicos Prince e Paul McCartney. Assim como ocorre com os líderes mundiais com quem o ativista Hewson se reúne, os encontros com estas personalidades do mundo do show business (e com outras, como as supermodelos Naomi Campbell, que chegou a ser noiva do baixista Adam Clayton, e Helena Christensen, ex-namorada de Hutchence) também rendem momentos por vezes engraçados, por vezes tocantes, para as páginas do livro.

O relacionamento com os colegas de banda (para quem ainda não sabe, o guitarrista The Edge e o baterista Larry Mullen Jr., além do já citado Adam Clayton) é muito mais focado na amizade entre os quatro e na união permanente entre eles, mesmo com alguns conflitos e dificuldades ao longo das décadas, do que nos aspectos "técnicos" da banda ou de sua trajetória. Fica claro ao longo do livro o respeito e a admiração de Paul por seus companheiros, algo que parece recíproco por parte deles, apesar de muitas vezes o cantor se colocar em posição mais "afastada" do grupo devido a suas muitas atividades "paralelas", principalmente como ativista. Vários membros do "staff" do grupo também merecem destaque no livro, em especial o ex-empresário Paul McGuinness e a coreógrafa Morleigh Steinberg, que viria a ser esposa de Edge. Embora, como já coloquei, o U2 não seja o foco principal do livro, os trechos sobre a banda são, de longe, os mais interessantes para mim, e oferecem a visão de Paul sobre as diversas "fases" do grupo, e como e por que a música da banda foi mudando com o tempo, saindo de um quase pós punk, ganhando influências da música norte-americana, experimentando com elementos eletrônicos e depois voltando a um som mais simples e próximo daquele feito no início de sua discografia.

Contracapa de Surrender: 40 Músicas, Uma História

Surrender: 40 Músicas, Uma História não é o livro definitivo sobre o U2, mas é um belo relato sobre a vida de seu cantor, que, como dito antes, é apenas uma das facetas que Paul David Hewson assumiu ao longo de sua vida. Se você for fã da banda ou do cantor, certamente, é leitura obrigatória. Se não for, pode, mesmo assim, ainda lhe render alguns bons momentos de leitura. Vale a pena arriscar!

domingo, 4 de agosto de 2024

Neil Young With Crazy Horse – Early Daze [2024]


Por Micael Machado

O bardo canadense Neil Young continua escavando seus arquivos musicais, e saindo de lá com pepitas de alto valor histórico para seus fãs. O mais recente lançamento (pelo menos no momento em que escrevo) saído desta aparentemente interminável mina de tesouros são os primeiros registros do cantor e compositor ao lado do Crazy Horse, grupo que iria ser a sua principal banda de apoio nos últimos 55 anos, desde que se uniram pela primeira vez para as gravações do que viria a ser o álbum Everybody Knows This Is Nowhere, lançado em 1969. As faixas que compõem este Early Daze (lançado em CD e vinil, além das hoje obrigatórias plataformas digitais) foram registradas naquele mesmo ano, com o Cavalo Doido ainda contando com sua formação original, com Billy Talbot no baixo, Ralph Molina na bateria (ambos até hoje ao lado de Young no Crazy Horse) e Danny Whitten nas guitarras, músico que viria a falecer em 1972, sendo que as três primeiras músicas ainda contam com Jack Nitzsche no piano, ele que era parte da primeira formação do Cavalo Doido, mas não chegou a participar do primeiro álbum de Young junto ao grupo.

Embora nenhuma música seja realmente inédita (embora a maioria das versões que aparecem no álbum não tenham sido lançadas anteriormente), algumas poderão soar como novidades aos menos atentos à carreira e à discografia de Young. É o caso de "Everybody's Alone", faixa que parece uma sobra de estúdio do Buffalo Springfield, a banda anterior de Young, e que já havia sido lançada anteriormente (ainda que com uma mixagem diferente) no box Neil Young Archives Volume 1, de 2009, ou de "Look At All The Things", cantada por Whitten, e que já havia sido registrada no autointitulado primeiro álbum "solo" do Crazy Horse, de 1971. Por outro lado, esta versão de "Cinnamon Girl" (aqui em uma versão mono) já havia sido lançada em compacto em 1970, e "Down By The River" tem aqui uma mixagem diferente da que aparece no citado Everybody Knows This Is Nowhere, mas, estruturalmente, não apresenta muitas variações em relação à versão original.

Neil Young with Crazy Horse em 1969: Ralph Molina , Billy Talbot, Danny Whitten,
Neil Young e Jack Nitzsche

As maiores "diferenças" que pude perceber encontram-se em "Wonderin’", faixa que teria um registro oficial apenas em 1983, no controverso álbum Everybody's Rockin', e que aqui aparece quase acústica e bem menos "rockabilly" que a versão daquele disco; "Winterlong", cujo lançamento oficial seria apenas na coletânea Decade, de 1977, e que aqui aparece um pouco mais lenta, com um arranjo vocal diferente e mais solos de guitarra que em sua versão mais conhecida; e "Birds", faixa lançada apenas em 1970 no álbum After the Gold Rush, e que aqui tem o piano trocado pelos violões, além de um novo arranjo que a deixou ainda mais melancólica, contando com a participação de todos os membros da banda (com destaque para a bateria de Molina), o que, a meu ver, a tornou ainda melhor (pois a original contava apenas com Young ao piano e vocais - cabe lembrar que esta versão já havia aparecido, com uma mixagem diferente, no citado box Archives Volume 1). No mais, temos uma versão mais roqueira e menos country de "Dance Dance Dance", faixa que aparece em vários registros ao vivo de Young (e também no já citado primeiro álbum "solo" do Crazy Horse), mas que nunca havia tido um registro de estúdio "oficial" anteriormente; uma versão de estúdio mais crua, mas basicamente igual, de "Come On Baby Let’s Go Downtown", que, além de também aparecer no primeiro registro do Cavalo Doido,  conta com uma versão ao vivo lançada no álbum Tonight's the Night, de 1975; e uma versão com um arranjo instrumental diferente (e, aos meus ouvidos, ainda mais tocante) de "Helpless", cujo registro "oficial" apareceria apenas em 1970 no álbum Deja Vu, do super grupo Crosby, Stills, Nash & Young.

Early Daze é um disco que, para os já iniciados na obra de Young, servirá para que eles, assim como eu, apreciem faixas já conhecidas em versões ainda iniciais, além da sempre bem vinda possibilidade de, mais uma vez, testemunhar o talento de Danny Whitten nas seis cordas e nos vocais, talento este que o mundo da música perdeu tão precocemente, infelizmente. Para aqueles não tão familiarizados assim com a discografia do canadense (especialmente aquela tendo o Crazy Horse como companhia), será apenas um bom álbum de uma grande banda saída diretamente do final dos anos 60, fazendo rock and roll como se fazia naquela época, com talento, garra, suor e tesão, ingredientes muitas vezes em falta na música atual. Em ambos os casos, seguramente, vale a audição!

Contracapa de Early Daze

Track List:

1. Dance Dance Dance

2. Come On Baby Let’s Go Downtown

3. Winterlong

4. Everybody’s Alone

5. Wonderin’

6. Cinnamon Girl

7. Look At All The Things

8. Helpless

9. Birds

10. Down By The River

Linkin Park - Papercuts (Singles Collection 2000–2023) [2024]

Por Micael Machado

Seja através de edições especiais de seus primeiros discos, ou de boatos de um retorno com um novo (ou uma nova) vocalista substituindo Chester Bennington, tragicamente falecido em 2017, o nome do grupo Linkin Park vem se mantendo em evidência na mídia nos últimos tempos. Um dos motivos que contribuíram para isto foi o lançamento, no começo deste 2024, da coletânea Papercuts (Singles Collection 2000–2023), primeira compilação de sucessos da carreira do sexteto norte-americano. Com vinte faixas em pouco mais de uma hora, o disco (lançado nos formatos CD, vinil duplo e K7, além das hoje obrigatórias plataformas digitais) percorre quase toda a carreira do grupo, além de trazer algumas raridades e uma faixa inédita.

Pois é justamente por ela que gostaria de começar minha análise desta compilação. "Friendly Fire", colocada na posição de encerramento da coletânea, é uma sobra do último disco de estúdio da banda, One More Light (de 2017), cuja existência já havia sido revelada pelo vocalista e multi-instrumentista Mike Shinoda durante uma transmissão ao vivo na Twitch em junho de 2020, embora na época ela ainda não estivesse finalizada, nem houvessem planos iminentes para seu lançamento. Na versão deste disco (a qual foi lançada como single em 23 de fevereiro de 2024, recebendo também um clipe oficial), a faixa se revela uma quase balada repleta de elementos eletrônicos, tendendo muito mais para o lado pop da música do grupo do que aquele nu metal dos primeiros anos, aspecto ressaltado pela letra, que trata de um relacionamento se acabando, apesar das duas partes, aparentemente, não desejarem isto! A meu ver, uma faixa apenas mediana, como muitas outras nos últimos discos do grupo.

O Linkin Park, em foto promocional do lançamento da coletânea: Phoenix, Joe Hahn,
Chester Bennington, Mike Shinoda, Brad Delson e Rob Bourdon

O repertório de Papercuts ainda conta com duas faixas que não são exatamente inéditas, mas que podem ser consideradas como raridades para os fãs da banda. Lançada originalmente no EP LP Underground 6.0 (de 2006, disponibilizado apenas para o fã clube oficial do grupo), "QWERTY" foi gravada durante as sessões que resultariam no disco Minutes to Midnight (de 2007), e representa com precisão a mistura de nu metal com rap que o sexteto costumava fazer no começo da carreira, alternando momentos mais pesados com outros em que o rap de Shinoda fica em evidência. Mais antiga ainda, "Lost" foi composta durante as gravações do segundo álbum, Meteora (de 2003), e lançada em uma versão demo na edição de vigésimo aniversário do disco, em 2023, e é uma faixa que já aponta os rumos mais pop que a banda adotaria em pontos futuros de sua carreira, embora ainda conte com algumas passagens mais pesadas de guitarra aqui e ali. Ainda no campo de "raridades", embora bem mais fácil de ser encontrada, podemos incluir "New Divide", originalmente presente na trilha sonora do filme 'Transformers: Revenge of the Fallen" (de 2009), e cuja versão de estúdio pela primeira vez faz parte de um álbum oficial da banda, visto que uma versão ao vivo já havia sido incluída no disco One More Light Live, de 2017.

O restante do track list, embora não esteja organizado de forma cronológica, parece, pela quantidade de músicas escolhidas para cada álbum, ressaltar o quanto a carreira do Linkin Park foi perdendo qualidade com o passar dos anos. Dos dois primeiros discos (Hybrid Theory e o já citado Meteorapara mim, os melhores da banda), foram selecionadas quatro músicas de cada um. Do terceiro, o também citado Minutes to Midnight, foram incluídas três faixas. De Living Things (2012), o quinto registro, foram incluídas duas músicas, e os demais discos de estúdio contribuíram com apenas uma faixa cada um, com exceção de The Hunting Party, de 2014, penúltimo registro de inéditas (e, para mim, um dos destaques na discografia do grupo, pois foi um álbum onde os músicos abandonaram um pouco o lado mais pop que vinha dominando as canções mais recentes do sexteto para fazer uma espécie de "volta às raízes" mais pesadas dos primeiros discos), o qual, infelizmente, nem chegou a ser representado nesta compilação, que ainda conta com uma faixa retirada de Collision Course, disco lançado em 2004 em parceria com o rapper Jay-Z, onde músicas dos dois artistas foram mixadas em "mashups" para criar faixas inéditas.

Contracapa da versão em CD de Papercuts (Singles Collection 2000–2023) 

Se você for um colecionador bastante dedicado do Linkin Park, Papercuts (Singles Collection 2000–2023) talvez lhe atraia por causa de "Friendly Fire", ou, talvez, de uma das demais "raridades" que apontei no texto. Se você nunca suportou ouvir a música do Linkin Park (ou se afastou do grupo a partir da guinada mais pop ocorrida a partir do terceiro álbum), não vai ser esta coletânea que vai mudar seu pensamento. Mas, se você for um ouvinte casual do grupo, e gosta de alguma faixa que ouviu aqui ou ali em algum lugar, é bem possível que esta música esteja nesta compilação, pois, como reunião de "hits" da banda, o álbum cumpre muito bem seu objetivo. Se este for o seu caso, pode dar uma chance ao registro, pois possivelmente vai encontrar algo de seu agrado!

Track List:

1. Crawling

2. Faint

3. Numb / Encore

4. Papercut

5. Breaking The Habit

6. In The End

7. Bleed It Out

8. Somewhere I Belong

9. Waiting For The End

10. Castle Of Glass

11. One More Light

12. Burn It Down

13. What I've Done

14. QWERTY

15. One Step Closer

16. New Divide

17. Leave Out All The Rest

18. Lost

19. Numb

20. Friendly Fire