domingo, 4 de setembro de 2016

Discografias Comentadas: EMF


Por Micael Machado

No começo da década de 1990, várias bandas da cidade inglesa de Manchester e arredores conseguiram destaques nas rádios mundiais com uma mistura de rock and roll, pop, samplers e outros elementos eletrônicos e ritmos dançantes e "grudentos", em uma "cena" que viria a ser chamada de "Madchester". Dentre nomes como Happy Mondays, The Stone Roses, Inspiral Carpets e James, foi talvez o Epsom Mad Funkers quem se deu melhor (mesmo tendo entrado no movimento meio que por "convenção" da imprensa, visto que a banda se originou na pequena Cinderford, cidade distante de Manchester). O quinteto era formado por James Atkin nos vocais, Ian Dench nas guitarras, Derry Brownson nos teclados e samplers, Zac Foley no baixo e Mark de Cloedt na bateria, todos músicos experientes na região (apesar de bastante jovens), e que foram "agrupados" graças à influência do músico DJ Milf, amigo dos caras, e que ajudou a montar a banda em 1989 (participando depois como convidado do primeiro disco). No ano seguinte, seu single de estreia pelo selo Parlophone, "Unbelievable", era lançado na Inglaterra, alcançando o número 3 da parada de seu país de origem, mas chegando ao primeiro lugar da parada americana. A repercussão abriu espaço para a gravação do primeiro registro completo, e para uma carreira que, entre altos e baixos, mantém os rapazes na ativa até os dias de hoje.

Conheça agora um pouco dos discos e da história de uma das bandas inglesas mais destacadas no final do século XX, o EMF!


Schubert Dip [1991]


"Unbelievable" trazia um pop pegajoso e que se adequava perfeitamente ao gosto das rádios FM daquele começo da década de 1990, mas o álbum de estreia do quarteto não seguia exatamente por esta linha. Os outros principais singles do álbum, "Children" e "I Believe", eram bem mais "nervosos", com a guitarra em destaque e um ritmo frenético, fruto da junção da bateria com os elementos eletrônicos. "Lies", outro destaque, é mais sombria, e causou controvérsia ao trazer, nas primeiras edições do disco, um sample da voz de  Mark David Chapman recitando as primeiras linhas da letra de "Watching the Wheels", música composta por John Lennon (a quem Chapman assassinaria em 1980). Este sample seria retirado das edições posteriores do álbum a pedido da viúva de Lennon, Yoko Ono. O track list de Schubert Dip (título que mistura o nome do famoso compositor austríaco a um popular doce inglês) traz faixas mais pop e dançantes como "Longtime", "When You're Mine", "Girl of an Age" e "Admit It" (guiadas pelos teclados) misturadas a faixas mais "frenéticas" (como "Long Summer Days") e outras de tom sombrio (como "Travelling Not Running", provavelmente a minha preferida na discografia do grupo, e que parece saída de um disco de qualquer uma das bandas góticas de destaque nos anos 1980), além de uma faixa escondida chamada "EMF", uma das melhores composições do quinteto, e cujo refrão brade "E-Ecstasy, M-Motherfuckers, F-From Us To You", o que fez muita gente acreditar que este era o significado da sigla que nomeia o quinteto, algo que os rapazes sempre desmentiram. A boa repercussão do disco de estreia (novamente número 3 na Inglaterra, e número 12 nas paradas americanas) levou ao lançamento do EP Unexplained em 1992, que trazia as inéditas "Far from Me" e "The Same", além de "Getting Through" (que reapareceria no disco seguinte) e uma bela cover para "Search and Destroy", clássico dos Stooges, além da oportunidade de lançarem o segundo disco pela mesma gravadora.

O EMF em 1991: Zac FoleyIan Dench, James Atkin, Mark de Cloedt e Derry Brownson

Stigma [1992] 


O final de 1991 viu o grunge ascender ao estrelato e mudar radicalmente o mundo das paradas de sucesso musical. O EMF com certeza foi atingido pelo furação originado em Seattle, e seu segundo disco vendeu muito menos (ficou na posição número 19 na Inglaterra, sem nem chegar às paradas americanas) e teve um destaque mínimo perto do registro de estreia. O grupo parece ter sido afetado pela áurea mais "séria" e "depressiva" do "novo" estilo musical vigente, e seu novo registro traria um ar muito mais sério e contemplativo do que Schubert Dip. De forma quase "poética", se poderia dizer que o grupo estava abandonando as alegrias da adolescência e passando a enfrentar as agruras da forma adulta, e um bom exemplo disto é o single "It's You", com uma guitarra menos distorcida que antes, teclados de tons mais sombrios e um certo "ar" mais "sóbrio" que as músicas do disco de estreia. "They're Here" é outra composição de tons sombrios, assim como "Never Know", e, apesar da "aura" pop destas duas faixas, parece que anos de distância as afastam das primeiras composições do quinteto, o que também ocorre com "She Bleeds", com muitos elementos eletrônicos, ritmo lento e um certo "peso" dado pelos samplers que pode assustar quem se acostumou com as faixas mais pop do começo da carreira. "Arizona" é uma música bem "rock de FM" (se é que isso existe), ou seja, aquele rock que é "OK", mas não chega a ser tão pesado quanto gostaríamos, apesar de trazer o melhor trabalho de baixo e guitarras do disco. "Inside", "Getting Through" (minha favorita neste disco) e "Blue Highs" ainda trazem um pouco do ritmo frenético e agitado do registro anterior (no caso da última, bem menos acelerado), mas não são tão "alegres" e "divertidas" quanto aquelas canções, o que não ocorre com "Dog", que poderia estar no meio de Schubert Dip sem destoar. Completa o track list a música "The Light that Burns Twice as Bright...", bastante pop, apesar de lenta. A queda na popularidade com certeza deve ter afetado aos membros do grupo, que praticamente se retiraram da cena musical por três anos, até reaparecerem de surpresa com seu terceiro registro de estúdio.

Cha Cha Cha [1995]

Sabe aqueles discos que a crítica determinou serem um fracasso e ninguém se preocupou de ouvir para tentar desmentir isto? Cha Cha Cha se encaixa perfeitamente nesta descrição. Não que a alcunha que lhe foi dada seja de todo vã, pois este é, certamente o pior registro do grupo, um equívoco lançado em uma época onde a cena musical estava a milhas de distância do ano em que o EMF surgiu, e onde a mistura "pop + eletrônico" já havia sido superada pelas bandas indies que ascenderam a partir do grunge, além da cena de rap e hip hop que começava a se erguer na esteira da morte de Kurt Cobain no ano anterior. Percebendo sabiamente que sua onda havia passado, o quinteto tentou reinventar a sonoridade de suas músicas, mas atingiu o alvo em poucos momentos, como no single "Perfect Day" (que trazia flautas tocadas por James em lugar dos elementos eletrônicos de outrora), "The Day I Was Born" (a que mais lembra as canções antigas), "Skin", "Bring Me Down" (duas faixas mais sombrias, com guitarras mais pesadas que o usual do grupo) e "Bleeding You Dry", pop com elementos agradáveis que talvez tivesse conquistado um bom destaque nas rádios cinco anos antes. Mas as faixas menos interessantes acabam sendo a maioria, como "Patterns", levada apenas pela voz de James e o violão de Ian; "West of the Cox", a qual possui um ritmo "malemolente" que a banda usou com resultados muito melhores em faixas mais antigas; "Secrets", que até tem umas guitarras mais pesadas em evidência (mas não chega a decolar); "La Plage", com uma melodia quebrada e confusa (bem diferente dos registros anteriores); "Glass Smash Jack", a qual possui uma bateria eletrônica chata e repetitiva (apesar de um refrão interessante); "Slouch", quase um punk rock atonal, que foi propositalmente gravada como se o grupo estivesse em um ensaio de garagem (e que não chega a lugar nenhum); "Ballad O' the Bishop", com seu ritmo eletrônico lento, repetitivo e chato; e as baladas "When Will You Come" e "Shining", recheadas de elementos eletrônicos (e orquestrações, no caso da segunda), mas que não conseguem se destacar no meio de tanto marasmo. A versão japonesa ainda trazia a faixa "Angel", melhor que muitas composições do track list oficial, mas sem apresentar nada de excepcional ou mais marcante.

O quinteto em 1995

A banda abandonou a turnê promocional de Cha Cha Cha no verão (europeu) de 1995, e retirou-se novamente da cena musical, não sem antes juntar-se aos comediantes Vic Reeves e Bob Mortimer para a gravação do single "I'm a Believer", cover dos Monkees que chegou ao número 2 da parada britânica, e de lançar seu último single oficial, intitulado Afro King, que trazia a faixa título, "Bring Me Down" (de Cha Cha Cha) e as inéditas "Too Much" (para mim,o destaque deste lançamento) e "Easy". Em 2001, foi lançada a coletânea Epsom Mad Funkers: The Best of EMF (em versões simples e dupla, esta com o segundo disco apresentando vários remixes para as faixas da banda), a qual trazia duas faixas inéditas, "Incredible" (que parece saída de Schubert Dip) e "Let's Go" (que mantém uma atmosfera dançante, apesar da sonoridade acústica). O quinteto se reuniu para uma excursão de promoção a este lançamento, mas, em janeiro de 2002, o baixista Zac Foley viria a falecer de uma overdose de medicamentos, o que levou o quinteto a um novo hiato, entrando mais uma vez em uma obscuridade musical.

O EMF ao vivo em 2012

Com Richard March (ex-integrante do grupo Pop Will Eat Itself) assumindo o baixo, os quatro membros remanescentes voltaram a excursionar em 2007, continuando até 2009, quando foi anunciado que o grupo não tinha mais nenhuma previsão para shows em um futuro próximo. Nesta época, o guitarrista Ian Dench, que havia se tornado um compositor de sucesso no mundo pop (tendo escrito hits para artistas como Beyonce e Shakira, só para citar duas) já não estava mais excursionando com o quinteto, tendo sido substituído pelo músico Tim Stephens. Em 2012, alguns poucos shows foram efetivados com a banda tocando Schubert Dip na íntegra (tendo Stevey Marsh no baixo), e, em fevereiro de 2016, o site oficial anunciou que o EMF será o headliner do festival Indie Daze, a ocorrer em Londres na data de 01 de outubro. Resta saber se esta nova reunião irá animar os rapazes (já nem tão jovens assim) a voltar a comporem juntos, ou se o Epsom Mad Funkers ficará apenas na história, marcado como um grupo de potencial enorme, mas com um sucesso limitado pelas circunstâncias do mercado musical. Só o tempo dirá!

Livro: Fresh Fruit for Rotting Vegetables [Os Primeiros Anos]


Por Micael Machado

Lançado em 1980, o álbum Fresh Fruit for Rotting Vegetables, disco de estreia dos Dead Kennedys, é um principais registros do hardcore norte-americano em todos os tempos. Várias de suas músicas tornaram-se clássicos do punk rock mundial, o mítico vinil branco da edição brasileira hipnotizava aqueles que colocavam os olhos sobre ele, e o quase inacessível encarte cheio de colagens e referências (elaborado pelo artista plástico Winston Smith, com sugestões de Jello Biafra) era "sonho de consumo" de muita gente que encontrava o vinil pelos sebos do Brasil, porém, quase sempre desfalcado deste artigo que era uma verdadeira obra de arte. A importância do disco é tamanha, que levou o escritor Alex Ogg a dedicar todo um livro a ele, tratando do período de composição e gravação do registro, assim como dos fatos mais importantes ocorridos com a banda antes de chegar a ele.

A ideia, segundo Ogg explica no prefácio, surgiu quando ele começou a entrevistar os membros da banda (a saber, Jello Biafra nos vocais, East Bay Ray na guitarra, Klaus Flouride no baixo e Ted na bateria) e outras pessoas que conviveram com o grupo na época, entrevistas estas que seriam usadas no encarte da edição de vinte e cinco anos do primeiro álbum do Dead Kennedys. Mas, como não deve ser segredo para quem acompanha o grupo, uma verdadeira batalha judicial acontece até hoje entre os ex-membros do DK, com Biafra de um lado, e Ray e Klaus de outro (Ted saiu do grupo ainda antes do segundo disco). Com isso, as partes envolvidas não conseguiram chegar a um consenso quanto ao uso de suas declarações, sendo que, várias vezes, as versões apresentadas por um lado eram bastante conflitantes em relação ao que o outro lado dizia, e o material acabou abandonado, com a edição especial do álbum sendo lançada de forma bem diferente do imaginado.

Klaus Flouride, Jello Biafra, East Bay Ray e Ted, em uma foto icônica do Dead Kennedys. As circunstâncias da noite onde ela foi tirada são relatadas no livro.

Com muito jogo de cintura, fazendo várias concessões e usando do que chamaríamos por aqui de "jeitinho brasileiro", Ogg conseguiu convencer os componentes do Dead Kennedys a deixá-lo publicar suas entrevistas na forma de um livro, que acabou sendo Fresh Fruit for Rotting Vegetables: Early Years, lançado em 2014, e que ganhou edição brasileira no mesmo ano, a cargo das Edições Ideal (com título traduzido de forma literal, felizmente). Unindo as declarações dos quatro membros originais, além de várias pessoas que, como disse antes, acompanharam este início de carreira do grupo, Ogg acabou obtendo um resultado bastante atraente, e indispensável a quem gostaria de saber um pouco mais sobre a história de uma das mais importantes aglomerações do punk rock norte-americano.

O autor inicia pela formação do Dead Kennedys, com o encontro de Biafra e Bay Ray, que depois se uniriam a Klaus, Ted e o guitarrista 6025 (que sairia antes das gravações de Fresh Fruitna primeira encarnação do conjunto. A partir daí, traça a trajetória ascendente do grupo, apresentando-se pelos bares de sua cidade natal, San Francisco, até ganhar residência no então importante Mabuhay Gardens, onde o quinteto pode desenvolver sua sonoridade e, principalmente, a presença de palco de Biafra, que agitava a plateia (e com ela), além de desafiá-la o tempo todo, e de se entregar "de corpo e alma" em suas apresentações (leia o livro e entenderá o que quero dizer). As dificuldades destes primeiros tempos, os primeiros registros (com os singles "California Über Alles" e "Holidays In Cambodia"), a consagração pelos palcos da Inglaterra, a oferta de lançar seu primeiro disco (pela gravadora britânica Cherry Red) e o período de gravação e divulgação do mesmo são narrados de uma forma que torna a leitura bastante fácil e atraente, com a história sendo contada pelas próprias pessoas que as viveram, e comentários adicionais aqui e ali feitos pelo autor para contextualizar alguns pontos. 

É fácil perceber que, mesmo passado tanto tempo, ainda há uma grande mágoa presente entre Biafra, Ray e Klaus. Não são poucas as oportunidades onde um contradiz o outro ao longo do livro, com Ted por vezes discordando dos dois lados, e apresentando uma terceira visão dos acontecimentos. Ogg fica sempre "em cima do muro" quando das discussões, apresentando sempre que necessário as versões de todas as vertentes envolvidas, sem escolher apenas uma para ser a "verdadeira", deixando isto a cargo do leitor. As divergências são frequentes e constantes, e vão desde a criação e composição das músicas até o fato de quem selecionou tal foto para o encarte ou quem foi o responsável pela escolha dos singles a serem lançados. Apesar destas várias discordâncias, a leitura não se torna maçante em momento nenhum, e tais fatos só servem para provar como um mesmo acontecimento pode ser encarado de formas totalmente diferentes por pessoas diferentes envolvidas com ele (e atingidas por ele).

A versão em capa dura da edição brasileira

O livro ainda conta com várias ilustrações a cargo do designer original do grupo, Winston Smith (o qual ganha um capítulo a parte tratando sobre a importância de seu trabalho), além de declarações de muitos músicos e personalidades influenciadas pela obra dos Dead Kennedys. Na versão lançada pela Edições Ideal (traduzida com competência por Alexandre Saldanha, e que ganhou uma bela versão especial em capa dura), consta ainda um emocionante texto escrito por Marcelo Viegas, responsável pela edição nacional da obra, e que destaca o impacto do disco para a juventude brasileira da época em que foi lançado (e, por que não, da que veio depois daquele tempo), em tom saudosista e de homenagem a um álbum de importância atemporal.

A obra acaba quando da saída de Ted, no final de 1980, e com o afastamento do Dead Kennedys da gravadora Cherry Red, ocorrido no ano seguinte, sem se alongar mais na biografia de uma das principais formações do hardore norte-americano. Mas, apesar de ficarmos com vontade de saber do restante da história após a leitura do livroFresh Fruit for Rotting Vegetables: Os Primeiros Anos é leitura obrigatória aos fãs não só dos Dead Kennedys, mas do punk rock em geral, e altamente recomendada a quem quer saber mais sobre o estilo, que tem no disco, como citei no início, um de seus principais representantes. Pode conferir!