sexta-feira, 18 de março de 2016

Livro: Nunca É O Bastante: A História do The Cure


Por Micael Machado

Resumir trinta anos da história de sucesso de uma banda famosa em apenas trezentas páginas deve ser um desafio enorme para qualquer escritor. Mas o jornalista australiano Jeff Apter (ex-editor da revista Rolling Stone na Austrália e colaborador de títulos como Vogue, GQ e Australian Hi-Fi) resolveu assumir esta bronca, e saiu-se muito bem ao redigir Never Enough: The Story of The Cure, livro que saiu lá fora em 2005, mas foi lançado no mercado brasileiro apenas em 2015, pela editora Edições Ideal (com o título, felizmente, traduzido em sua versão literal para o português, e não com "inventos aleatórios", como muitas vezes se vê por aí). A espera acabou sendo, de certa forma, benéfica para o Brasil, pois permitiu o acréscimo de um epílogo escrito em 2008 que, além de aumentar um pouco o número total de páginas da obra (que ficou em 318, mais dez outras apenas com fotos), agrega alguns outros fatos importantes acontecidos com o grupo depois da edição da versão original. O bom resultado apresentado por Apter em seu livro se torna ainda mais surpreendente quando constatamos que o convite feito pelo vocalista, guitarrista e eterno líder do The Cure, Robert Smith, para que seu "fiel escudeiro" Simon Gallup (baixista e principal colaborador do cantor ao longo da história da banda) se juntasse ao grupo acontece apenas na página 116 da obra. A entrada de Gallup, no final de 1979, e a consequente gravação do segundo registro do The Cure (Seventeen Seconds, de 1980), marcam, de acordo com Smith, a verdadeira "estreia" do conjunto (devido a vários problemas com a gravadora surgidos antes, durante e depois do lançamento do primeiro disco, Three Imaginary Boys, de 1979), e é, de certa forma, o início da estrada que levaria o The Cure ao reconhecimento mundial alguns anos depois.

Uma das mais importantes formações do The Cure: Simon Gallup, Porl Tompson, Laurence Tolhurst, Boris Williams e (à frente) Robert Smith

Estes "conflitos" com a gravadora são bem explorados pelo autor em algumas das páginas anteriores à união de Smith com Gallup, mas o foco da obra, até então, está na infância e adolescência dos amigos Robert Smith e Laurence Tolhurst (que viria a deixar o grupo em 1989), os quais se conheceram na escola ainda muito jovens, e foram os criadores daquela que viria a ser uma das maiores bandas do mundo nas décadas seguintes. Os primeiros passos musicais dos dois artistas (em grupos embrionários como o The Obelisk e o Easy Cure), suas decepções e suas pequenas conquistas são bastante detalhadas por Apter, que deixa claro que o sucesso não vem por acaso, e que a convicção dos dois músicos em sua obra nunca esmoreceu, mesmo diante de desafios e transtornos (principalmente com a primeira gravadora do grupo, a alemã Hansa) que fariam muitos desistirem, como aconteceu, de certa forma, com o baixista original Michael Dempsey, que saiu (ou "foi saído") do The Cure pouco depois do lançamento de seu primeiro registro completo.

A partir da união de Smith e Tolhurst com Gallup, e do lançamento do segundo disco, o The Cure começou uma trajetória que, entre altos e baixos, levou a banda, como já mencionei, a ser um dos maiores ícones do mundo da música, especialmente na década de 1980, quando seu nome era sinônimo de sucesso, muitas vezes por causa da associação ao termo "rock gótico" (rótulo que Smith sempre rejeitou, mas que, mesmo contra a vontade do cantor, ficaria associado para sempre a estes britânicos desde aqueles tempos). A estrada do grupo não foi feita apenas de momentos felizes, e as muitas mudanças de formação, os problemas de todos com as drogas (com abusos de diversas substâncias ilegais ao longo de muitos e muitos anos), as vidas pessoais atribuladas (principalmente a do líder Smith, que nunca lidou muito bem com o sucesso e o reconhecimento dos fãs invadindo sua privacidade), as dúvidas do líder Robert com relação ao futuro de seu grupo (que o levaram até mesmo a ser membro permanente de oura banda por um tempo, no caso o Siouxsie & the Banshees, e a montar um projeto paralelo de curta duração, intitulado The Glove) e as discussões artísticas com a gravadora Fiction (detentora da maior parte do catálogo do grupo) aparecem com destaque ao longo da obra, bem como comentários do autor para as composições registradas nos onze discos de estúdio lançados após Seventeen Seconds, bem como das circunstâncias de suas gravações e composições, e do "estado de espírito" do grupo quando das mesmas.

O The Cure com Martin Judd nos teclados. Sua passagem pela banda é esclarecida no livro.

A partir da leitura da obra, não é difícil perceber o porquê de tantas mudanças musicais (e pessoais) ao longo da história do The Cure. Do rock lento e depressivo da trilogia Seventeen Seconds, Faith e Pornography ao pop deslavado dos singles Let's Go To Bed, The Walk e The Lovecats, do reconhecimento das rádios aos álbuns The Head On The Door e Kiss Me Kiss Me Kiss Me ao retorno à depressão com os registros Disintegration e Bloodflowers, de lançamentos de sucesso como Wish a títulos equivocados como Wild Mood Swings, a trajetória de Smith e seus asseclas percorreu muitos caminhos diferentes, que pareceriam esquizofrênicos a um ouvinte casual. Mas, graças a Never Enough, se consegue perceber os motivos que levaram a banda por tantos caminhos tortuosos, criando uma legião de fãs que lhes apoiaram em todas as suas aventuras, e continuam a lhes dar suporte ainda hoje. A grande variedade de músicos e formações que o The Cure apresentou nos trinta anos compreendidos pela obra também acaba sendo explicada, de uma forma que demonstra que, ainda que se tenha a percepção de que Smith seja uma pessoa difícil de lidar, a realidade não é tão simplista assim (neste quesito, é primorosa a explicação do autor para a rápida passagem do tecladista Martin Judd pelo grupo em 1986, fato que até o lançamento do livro causava muita controvérsia entre os fãs mais fiéis da banda). A obra também não se furta de dar o crédito de  boa parte do sucesso da banda aos seus elaborados vídeo clipes, especialmente aqueles que tiveram como responsável o diretor Tim Pope, em uma duradoura associação que obteve um sucesso enorme enquanto perdurou.

Como disse, o fato de Apter conseguir contar toda esta conturbada jornada em pouco mais de cento e oitenta páginas (a partir daquele encontro registrado acima) é surpreendente, ainda mais quando se leva em conta que, ao contrário do que acontece em outras biografias, o autor não "apressa" os fatos, evitando "pular" aqueles que julga menos importantes e "resumir" os que mais se destacam, como já li em muitas outras biografias. Indo em direção contrária a vários de seus colegas de profissão, o autor "dá espaço" ao seu relato, em um texto que valoriza as histórias que conta, lhes dando o tamanho necessário e merecido, em uma edição que resulta muto fácil e agradável de ler, ajudada pela competente tradução para o português, a cargo de Ligia Fonseca, que presta um trabalho primoroso, demonstrando um bom conhecimento não apenas da língua inglesa, mas também do assunto abordado (fato que frequentemente é deixado de lado quando as editoras selecionam tradutores para suas obras).

Contracapa de Nunca É O Bastante: A História do The Cure

Com tudo isto, e apesar da trajetória do The Cure continuar ainda hoje, com outros fatos que também mereciam estar registrados em uma biografia, Never Enough: The Story of The Cure se torna ainda mais recomendável, especialmente para quem, como eu, tem o grupo britânico como um dos pilares de sua formação musical (ou apenas aprecia a obra de Smith e companhia, sem o fanatismo exacerbado de alguns fãs). Mesmo que você não goste tanto assim da banda, mas tenha algum interesse pela música e o universo pop das duas últimas décadas do século passado, deveria dar uma "olhada" neste primoroso livro. Garanto a você que não irá desperdiçar seu tempo. Pode acreditar!

Livro: Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia


Por Micael Machado

O jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical e letrista paulista Nelson Motta esteve presente em muitos dos momentos importantes da música brasileira nos últimos cinquenta anos (pelo menos), às vezes como testemunha, e outras como protagonista de fatos que, mais tarde, seriam considerados históricos em termos musicais. Em uma destas ocasiões, foi responsável por apresentar Tim Maia à "pimentinha" Elis Regina, em 1969. O encontro dos dois cantores gerou a gravação da canção "These Are The Songs", que catapultou a carreira de Tim para o estrelato. A partir daí, o músico carioca e Motta criaram uma amizade que duraria, entre altos e baixos, até o falecimento do cantor, em 1998. Por isso, quando a biografia de Tim Maia foi lançada em 2006, não foi surpresa descobrir que o autor do livro (intitulado Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maiaera o amigo de longa data de Maia.

Sebastião Rodrigues Maia (nome de batismo de Tim) foi um dos mais importantes e controversos artistas da música brasileira da segunda metade do século passado. Sua história cheia de fatos pitorescos rendeu, através da excelente prosa de Motta, um livro agradabilíssimo de ler, divertido, instrutivo, detalhado e, por vezes, até mesmo emocionante. Da infância entregando marmitas no Rio de Janeiro aos primeiros passos musicais em grupos vocais de seu bairro (alguns ao lado de Roberto e Erasmo Carlos - sim, esses mesmos em que você está pensando!), do sofrimento com a morte do pai ao período passado nos Estados Unidos (onde acabou preso por, entre outros delitos menores, dirigir um carro roubado de Nova Iorque a Miami, mas onde também conheceu o soul e o funk norte-americanos, os quais traria de forma precursora ao país anos depois), dos tempos de pindaíba quando da volta ao Brasil (deportado pela justiça americana) ao sucesso retumbante na década de 1970, do conturbado período de ostracismo nos tempos em que se dedicou à seita do Racional Superior (que rendeu muitas decepções ao músico, mas também dois dos melhores discos da MPB em todos os tempos) à volta triunfante aos holofotes da mídia nos anos 80, da entrega às drogas e ao álcool durante o final daquela década e o começo da próxima (onde faltava com tanta frequência aos compromissos assumidos que chegava a causar surpresa quando comparecia a um de seus próprios shows) às tentativas de retomar a saúde e o sucesso nos anos imediatamente anteriores à sua morte, as quase quatrocentas páginas de Vale Tudo formam um relato imperdível não só para os fãs do cantor, mas também para todos aqueles interessados em saber o que de importante aconteceu na música produzida no país entre 1965 e o final do século XX.


Nelson Motta e Tim Maia juntos em Nova Iorque

As histórias e relatos (por vezes beirando o inverossímil, mas quase sempre engraçadas, e todas muito interessantes, graças à forte personalidade de Tim, que, como declara Motta, era um personagem de tal feita que nenhum ficcionista seria capaz de criar) sucedem-se de forma natural, bem como as análises feitas pelo autor da discografia do cantor e dos bastidores de suas gravações. A vida particular de Tim também não é deixada de lado, e a importância de sua família, de seus amigos e de suas (várias) mulheres é ressaltada ao longo de toda a narração da trajetória do "síndico" (apelido que recebeu de Jorge Benjor, eternizado na música "W/Brasil (Chama O Síndico)"). Destaca-se ainda, ao longo da leitura, as inclusões de termos "peculiares" do vocabulário do cantor, como "Bauret" (gíria para maconha eternizada pelos Mutantes no disco Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, e cuja origem é esclarecida no livro), "Garrastazu" (um local no prédio onde estivesse no qual ele poderia se esconder e "queimar um bauret"), "Levadinho" (o cachê de seus trabalhos, que poderia ser um "levado" ou um "levadão" dependendo do tamanho) ou "Estratégia", comando que, quando dado por Tim a seus músicos, significava algo como "abandonar o navio", independente das consequências que a debandada fosse causar.

Chama a atenção também a quantidade de hits que o cantor gravou ao longo de sua carreira (mesmo eu, que nunca fui o mais dedicado fã deste artista, ao ler o nome das músicas de destaque em sua trajetória citadas por Motta ao longo da obra, lembrava quase que imediatamente a melodia e/ou a letra - ou pelo menos o refrão - de praticamente todas elas), assim como o grande número de personalidades que surgem aqui e ali ao longo das páginas do livro, em interações por vezes fugazes, por outras duradouras e permanentes na vida de Maia. Músicos, artistas, políticos, jogadores, muitas e muitas figuras conhecidíssimas, as quais normalmente não seriam associadas a um cantor tão popular quanto o biografado, acabam marcando presença em situações as mais variadas, e cujos rumos a personalidade forte e decidida de Tim poderia mudar rapidamente!



Algumas imagens das páginas do livro Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia

Depois de saber tudo isto a respeito do livro, o caro leitor há de estar pensando: "Ok, pode até ser interessante, mas eu já assisti ao filme (ou ao musical, ou ainda à minissérie exibida na televisão) baseado nesta obra aí, então já conheço a história, e não preciso perder meu precioso tempo me dedicando a conhecer um registro tão comprido (400 páginas, por favor, né?)". Ledo engano, meu estimado amigo: o que você viu na tela (ou no palco) não corresponde, arrisco a dizer, a vinte por cento daquilo que consta nas páginas da biografia. E mesmo aquilo que foi selecionado para ser filmado (ou encenado) surge de forma mais extensa e detalhada no livro, tornando a leitura deste bastante prazerosa (e, sobretudo, indicada) mesmo aqueles que já tiveram a oportunidade de estar presentes às três mídias que usaram Vale Tudo como fonte de inspiração. Confira lá, e depois venha aqui me dizer que estou errado, caso tenha coragem!